
Por trás da fumaça suave e de sabores adocicados, o cigarro eletrônico esconde uma ameaça crescente: um risco real, silencioso e cada vez mais presente na vida de adolescentes e jovens. No Dia Mundial Sem Tabaco, celebrado neste sábado (31/5), o alerta se intensifica. Apesar de ter a venda proibida desde 2009, os dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) têm se tornado uma perigosa porta de entrada para problemas respiratórios graves, vício precoce e, em alguns casos, desfechos trágicos. Infelizmente, a comercialização desse produto continua sendo feita.
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No Distrito Federal, o cerco tem se fechado contra o comércio desse item. Em 2025, até o momento, a Secretaria de Saúde já autuou 40 estabelecimentos, sendo 30 com interdição total ou parcial. Foram emitidos seis termos de apreensão de cigarros eletrônicos, resultando na coleta de 66 dispositivos e insumos, além de 10 termos relativos a narguilés, com 238 aparelhos apreendidos.
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Os números de 2024, no entanto, mostram que a repressão ao comércio irregular desses produtos ainda enfrenta um cenário desafiador: 224 estabelecimentos foram fiscalizados, 59 autuados — 34 deles por permitirem o consumo de produtos fumígenos em ambientes coletivos fechados —, 17 foram interditados, e houve a apreensão de 625 cigarros eletrônicos, 221 narguilés e 791 litros de bebidas clandestinas.
Apesar da repressão em bares, tabacarias, distribuidoras e eventos, os cigarros eletrônicos continuam sendo vendidos como se fossem produtos comuns. Na Rodoviária do Plano Piloto, é fácil encontrar uma grande variedade de vapes por preços que vão de R$ 50 a R$ 100, dependendo da quantidade de puxadas. No ambiente on-line, a situação é ainda mais complexa: há uma oferta quase ilimitada de dispositivos, com sabores variados — como uva, maçã-verde, Halls preto e até canabidiol — e modelos que chegam a 40 mil puxadas, com preços que podem alcançar até R$ 671.
Essa facilidade de o se reflete nas ruas. O perfil de consumidor varia e os vapes são usados de modo casual em diversos ambientes. Muitos usuários procuram o item como uma alternativa ao cigarro convencional, como é o caso de João Alberto (nome fictício para preservar a identidade), 24, que usa o cigarro eletrônico há dois anos. A dependência, porém, persiste: "A ansiedade é o mais difícil. Tento parar, mas é complicado". Ele conta que o uso se tornou um hábito social, comum entre os colegas de escritório. "Estávamos até comentando sobre o caso da menina de 15 anos que morreu, foi aterrorizante", disse.
Com três anos de uso de vape, a aposentada Silvana Oliveira (nome fictício), 60 anos, compartilha experiência semelhante. Ela conta que havia deixado o cigarro tradicional, mas recorreu ao vape para "não ficar sem nada". Mesmo ciente dos perigos associados aos dispositivos eletrônicos, usa todos os dias. "Estou tentando parar com esse negócio, viu?", desabafa. Silvana costuma consumir aparelhos com até 20 mil tragadas, atraída principalmente pela praticidade. "Quando bate aquela vontade, não tem jeito", conta, enquanto se despede para correr e pegar o ônibus — vaporizador em mãos.
Tragédia
Nesta semana, a morte de uma adolescente de 15 anos acendeu o alerta sobre esse panorama trágico. A jovem ficou internada em estado grave, por conta de complicações, decorrentes do uso de cigarro eletrônico, hábito recorrente, mas que escondia dos pais.
Com tosse persistente há cerca de quatro meses, ela ou por hospitais públicos, e, quando deu entrada na internação, estava com um dos pulmões completamente comprometido. O corpo da adolescente foi velado na tarde de ontem, no cemitério de Águas Lindas. "Estamos em luto eterno", desabafou o pai à equipe de reportagem do Correio.
Casos como o da jovem refletem um assombroso quadro. Dados do Ministério da Saúde mostram um aumento de 25% no número de fumantes no Brasil entre 2023 e 2024 — um crescimento puxado, em parte, pela popularização dos dispositivos eletrônicos para fumar. Entre jovens de 18 a 24 anos, a última pesquisa Vigitel apontou que 6,1% já fazem uso regular desses produtos.
Danos graves
Entre os especialistas, o alerta é unânime: os danos causados pelos cigarros eletrônicos podem ser mais agressivos e rápidos do que os do cigarro convencional. A pneumologista Alessandra Camargo, que acompanhou o caso da adolescente de 15 anos, é uma das que alerta para isso. "Às vezes, a pessoa começa com uma tosse sem motivo aparente, que vai se arrastando até abrir um quadro de pneumonia, a qual, na verdade, é uma lesão inflamatória causada pelo vape".
Ela destaca ainda um dos principais riscos: a pneumonia lipoídica, condição grave e de difícil tratamento. "Ela é causada pela inalação de gorduras presentes no vape, como a vitamina E e extratos de cannabis. O corpo precisa reabsorver o que é estranho, num processo inflamatório lento", adverte.
O pneumologista Rafael Rodrigues de Miranda, professor do Grupo MedCof e médico pela USP-SP, chama atenção para os sinais que pais e responsáveis devem observar para identificar possíveis danos causados pelos chamados vapes, como "tosse persistente, chiado no peito, falta de ar mesmo com esforços leves, dor no peito e cansaço incomum".
Ele também alerta para a presença de substâncias altamente tóxicas nos líquidos utilizados pelos dispositivos eletrônicos: "Além da nicotina em alta concentração, há aldeídos como formaldeído, metais pesados e compostos orgânicos voláteis. Um dos principais vilões associados à Evali (lesão pulmonar associada ao uso de cigarro eletrônico, tradução do inglês) é o acetato de vitamina E, comum em produtos clandestinos."
Investigação
Apesar da proibição da comercialização de cigarros eletrônicos no Brasil, os dispositivos continuam a circular livremente no Distrito Federal, impulsionados pelo contrabando e por uma fiscalização ainda insuficiente. Segundo o delegado Rodrigo Carbone, diretor-adjunto da Coordenação de Repressão aos Crimes contra o Consumidor, a Propriedade Imaterial e Fraudes (Corf), os vapes chegam principalmente do Paraguai e entram no país pela ampla fronteira. A distribuição no DF se dá, tanto em lojas físicas, quanto por meio do comércio on-line, que tem mais dificuldade de controle.
"O vape assumiu um protagonismo entre os jovens por gerar a falsa sensação de que, por ser aromático e saborizado, não é nocivo para a saúde, o que não é verdade. A demanda aumentou muito nos últimos cinco anos", alerta Carbone. O delegado destaca ainda que a gravidade do crime pode ser comparada — e até superar — a do tráfico de drogas, dependendo da configuração do caso. "O autor pode ser enquadrado em crime contra a saúde pública, com penas que variam de 10 a 15 anos de prisão, além da pena adicional por contrabando", explica.
Fiscalização e prevenção
Embora a proibição esteja em vigor desde 2009, a fiscalização esbarra em lacunas operacionais e legais. A Instrução Normativa nº 30/2022 da Secretaria de Saúde do DF, por exemplo, estabelece critérios para o funcionamento de tabacarias e uso de produtos fumígenos, mas não é suficiente para coibir o comércio ilegal crescente. Questionada sobre a atuação direta em operações, a Polícia Civil (PCDF) destacou que a repressão ao uso e tráfico de substâncias é coordenada por setores especializados como a Coordenação de Repressão às Drogas (Cord).
Além da repressão, iniciativas preventivas também fazem parte do esforço de enfrentamento. A Polícia Militar (PMDF), por exemplo, desenvolve ações como o Proerd, programa educativo voltado à prevenção do uso de drogas e da violência nas escolas. A Polícia Civil conta com o projeto Cabeça Feita, que promove palestras e visitas guiadas ao Museu de Drogas e de Armas, além de atividades com a unidade móvel do Museu Itinerante. As ações buscam conscientizar alunos e suas famílias sobre os riscos do consumo precoce e abusivo de substâncias, como os cigarros eletrônicos.
Para além de coibir a venda, as ações têm se visado conscientizar a população. O Brasil tem um plano para reduzir em 40% o número de fumantes nos próximos anos, uma das metas previstas no Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas e Agravos Não Transmissíveis 2022-2030.
No Distrito Federal, o índice atual está abaixo da média nacional. Dados de 2023 revelam que 8,4% dos adultos da capital federal fumam, com maior prevalência entre os homens (10,7%) do que entre as mulheres (6,4%). Ainda assim, o desafio de combater o tabagismo permanece, especialmente diante do crescimento do uso de dispositivos eletrônicos para fumar, como os cigarros eletrônicos.
Para quem deseja abandonar o vício, a Secretaria de Saúde do DF oferece atendimento em mais de 80 unidades públicas. O Programa de Controle do Tabagismo segue diretrizes do Ministério da Saúde e inclui ações educativas, acompanhamento com equipes multiprofissionais e formação de grupos terapêuticos. O objetivo é acolher, orientar e tratar cada paciente de forma individualizada, respeitando suas necessidades e dificuldades no processo de cessação do tabagismo.
Colaborou Letícia Mouhamad
*Nomes fictícios usados para preservar os entrevistados
Saiba Mais
Principais riscos
De acordo com os pneumologistas Alessandra Camargo e Rafael Rodrigues de Miranda, os cigarros eletrônicos oferecem diversos riscos à saúde. Confira os principais:
- Pneumonia inflamatória e lipoídica: O vape pode causar uma lesão inflamatória no pulmão que predispõe a infecções secundárias, podendo evoluir para um quadro de pneumonia.
- Alta concentração de nicotina e vício precoce: Os cigarros eletrônicos contêm nicotina em concentrações muito elevadas (20 a 57 gramas, bem acima do limite legal do cigarro tradicional), levando a uma dependência mais rápida e intensa, especialmente em adolescentes
- Agravamento de quadros respiratórios e infecções: O uso de vape inflama o pulmão e enfraquece suas barreiras naturais, tornando-o mais suscetível a infecções virais e bacterianas. Em casos de associação com outras infecções, como a covid-19, o quadro pode se agravar e ser fatal.