Por Thiago Turbay* — A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou todos os atos processuais e arquivou ação penal de injúria racial movida por um homem branco contra um negro. O colegiado rejeitou a tese de racismo reverso. O Ministério Público de Alagoas havia denunciado o homem que endereçou uma mensagem contendo o seguinte conteúdo: "escravagista cabeça branca europeia". A vítima tem nacionalidade italiana. A denúncia foi aceita pelo Judiciário, sob o argumento de ter havido violação ao artigo 2-A a Lei 7.716/89.
O relator do caso, ministro Og Fernandes, fez menção ao julgamento com perspectiva racial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), documento que instrui os atores do Sistema de Justiça em demandas raciais. Argumentou, ainda, que o delito de racismo visa à proteção de grupos minoritários, sujeitados a processos de rebaixamento em razão da cor da pele.
A decisão gerou repercussão em arenas discursivas que fomentam discursos de ódio e recebeu ameaças de retaliação. Entre elas, a do deputado federal Kim Kataguiri (União-SP), que declarou querer "rever a decisão", o que não me parece possível dado o desenho institucional que regula as funções e atribuições parlamentares.
Nesse caso, resulta útil a definição de racismo estrutural. Tomarei como marco teórico a formulação de Silvio Almeida, que parece condensar os grandes debates sobre racismo, oferecendo critérios metodológicos úteis e atuais de identificação, modelagem e efeitos, sem desconsiderar os avanços da filosofia crítica na matéria.
O racismo estrutural integra diversas práticas e mecanismos, que se ordenam e articulam de maneira a potencializar a discriminação, a promover dispositivos de controle e poder, de maneira sistematizada, havendo desenhos institucionais e estratégias coloniais de deterioração, invisibilização da população negra. Produz efeitos individuais e transindividuais, com afetação subjetiva e epistemológica, de maneira a atualizar os mecanismos de dominação, tirando o povo preto do alcance da dignidade humana. O racismo é a regra. O funcionamento das relações sociais e dos sistemas comunitários e políticos se dá nessa ótica. O conceito é correspondente aos interesses jurídicos de regulação de condutas e estruturas de poder.
A explicação é salutar dado que explicita que as relações de poder e domínio são condições necessárias à consecução do racismo juridicamente relevante, o que implica assumir haver uma conduta incompatível com a norma jurídica.
O sistema jurídico nacional contém norma constitucional que proíbe a discriminação racial, estipulando uma sanção condicionada à ação discriminatória. A proibição está atrelada à proteção da dignidade humana, inexoravelmente. Há necessidade de projetar em todo o sistema mecanismos de aplicação e formatação de normas que não sejam incoerentes, incompletas e, que devem corresponder à expectativa de vigência do conteúdo regulado, incidindo sobre relações específicas, com relevância jurídica.
O direito é eficiente quanto à integração política e comunitária, dado que controla as relações sociais e o comportamento individual, bem como define a engenharia do exercício do poder, manejando operadores deônticos que determinam proibições, permissões e obrigações, com atuação em múltiplos níveis, os quais operam coerções, a exigibilidade do agir em conformidade, sob ameaça e aplicação de sanção.
A premissa é de que o sistema jurídico não pode tolerar discriminação racial, dado que haveria rompimento racional das bases axiológicas e da racionalidade ordenadora do conjunto de normas.
As normas jurídicas, por sua vez, são informadas por enunciados que expressam as condutas objetos de regulação e, explicitam a consequência jurídica em caso de descumprimento, que tem conteúdo prescritivo, prescreve uma ação à autoridade autorizada pela norma e indica à cidadania qual a guia de conduta a seguir. As normas jurídicas são formuladas por duas facetas: uma oração que expressa o fato que sofrerá interferência e o conteúdo prescritivo incidente, estipulando sanção em caso de descumprimento. O sistema jurídico, por fim, depende da apreensão do conteúdo expressado pelas normas, nas distintas facetas, levando em consideração um número máximo de ações a serem reguladas e o conjunto de soluções viáveis.
Voltando ao caso, se a oração que descreve o fato regulado não expressa semanticamente o significado da discriminação racial, juridicamente relevante, o predicado de ação não se corresponderá àquele que sofre intervenção do direito. Ademais, não estará integrado no conjunto de soluções possíveis. Há exigência de prévia conformação semântica daquilo que expressa o conteúdo das normas jurídicas. Não há como defender sistematicamente a punição de racismo reverso.
Sem embargos, não haverá incoerência do sistema jurídico ao não aplicar sanção à discriminação racial em casos de ofensas raciais de negros contra brancos. Vejamos a formulação considerando a aplicação da lógica.
A norma N contém a proposição prescritiva que proíbe (F) a discriminação em razão da raça (d), o que gera uma consequência jurídica (p) em caso de descumprimento, considerando o universo de enunciados de ação relevantes contidos na norma (Uc), de modo que a ordem prescritiva seja conjugada pela autoridade x, de acordo com critérios pragmáticos do sistema normativo operativo. Dessa maneira, é possível representar o seguinte esquema N=F(d) (d Uc x p). A norma N está contida no Sistema Jurídico operativo hipotético (Sn).
Vejamos uma norma N1, que dispõe sobre a concessão preferencial de vagas para negros em contratações públicas. Tal norma não é incoerente à N, dado que não há inconsistência lógica em: N1= F(d) (~d Uc ~p). A equação expressa que se não há discriminação, não haverá consequência jurídica a ser aplicada.
No caso, a oração descritiva contida no enunciado de ações não é extensível ao predicado discriminação, dada a ausência dos elementos conceituais que explicam o que é discriminação. A concessão preferencial não contém as propriedades que determinam o ato discriminatório, necessariamente. Outrossim, o significado semântico não está contido no universo de casos relevantes em que incide a norma, não havendo exigibilidade da consequência jurídica relativa à F(d).
Ocorre o mesmo no caso do racismo reverso, dado que não haverá discriminação, o que é compatível com a norma elementar que proíbe a discriminação racial. (~d ~p). O contrário sim, defender o racismo inverso produz efeitos racializados que estão incorporados no conceito de racismo estrutural, dado que revela uma dimensão operativa de exercício de poder que implica descontinuação da esfera de direitos os quais incide obrigação de proteção aos discriminados. A tentativa é incorporar novo mecanismo de opressão e sanção, que reproduz efeitos discriminatórios. Se voltarmos ao esquema lógico: F(d) (d Uc ~p), o que resultaria em inconsistência do sistema, descumprindo axioma lógico.
A conclusão é de que sob uma perspectiva operativa e sistematizada, não pode haver racismo reverso. Ademais, se avaliarmos sob uma perspectiva da lógica normativa, não há incoerência lógica em não aplicar consequência jurídica em casos de injúria racial de negros contra brancos, o que não constitui racismo, podendo haver outras consequências jurídicas oponíveis, que não tem relação com a raça. Qualquer dos ângulos de análise indicam que não é racionalmente justificada a defesa do racismo reverso, não havendo razões jurídicas adequadas que comportem concluir o contrário.
*Doutorando pela Universitat de Girona (UdG/Espanha), mestre em raciocínio probatório pela UdG, mestre pela Universitá Degli Studi di Genova (UniGenova/Itália), mestre em direito pela Universidade de Brasília (UnB)