
A história do Brasil e do cinema reescritas. Com o longa Ainda estou aqui — na alta conta de ser candidato ao Oscar de melhor filme e, simultaneamente, melhor filme internacional — chega-se ainda ao dividendo de o Brasil contemporâneo de democracia recauchutada. Candidata ao Oscar, Fernanda Torres, no longa, interpreta a ativista Eunice Paiva, que travou batalha dura, até o reconhecimento da morte do marido, o politizado Rubens Paiva. Diante de resolução do Conselho Nacional de Justiça, o registro da morte do ex-deputado e engenheiro Rubens — extirpado da família, em janeiro de 1971 — foi revisto, e encerra morte descrita como "não natural", violenta, e causada pelo Estado brasileiro. Dissidentes do regime ditatorial estabelecido em meados dos anos de 1960 terão revisão similar.
Nem a arte nem a vida se imitam; no caso, se complementam. "Ainda estou aqui vem em boa hora. Muita gente andou pedindo um golpe militar recentemente, e o filme relembra de forma emocional o que significa viver num sistema arbitrário onde a democracia é suprimida", observa Fernando Meirelles, em entrevista ao Correio. Com visão próxima ao do brasileiro indicado ao Oscar por Cidade de Deus e autor ainda dos contestatórios O jardineiro fiel e Dois Papas, a atriz brasiliense Maeve Jinkings, do elenco do filme de Walter Salles, observa: "O filme traz de volta a história da dor das pessoas que viveram uma ditadura militar. Isso no momento em que, no país, há quem esteja, de novo, flertando com o autoritarismo. Flertando, não. Alguns estão casados ele; então a gente está trazendo essa discussão".
Filho de Jirges Ristum, sociólogo, escritor e repórter, além de assistente de direção de cineastas como Glauber Rocha e Roberto Rossellini, o cineasta André Ristum (criador do premiado De Glauber para Jirges) atenta para a retumbância de Ainda estou aqui. "De alguma maneira, isso pode aumentar o interesse do público por tantos filmes que já debateram o tema, mas que não tiveram o mesmo alcance. O assunto da ditadura é fundamental de ser discutido constantemente, para que jamais volte a ter espaço para acontecer algo similar no país", pontua. O Correio revela outras opiniões da intelligentsia nacional:
"Ainda estou aqui vem em boa hora. Muita gente andou pedindo um golpe militar recentemente, o filme relembra de forma emocional o que significa viver num sistema arbitrário em que a democracia é suprimida. O Exército Brasileiro tem uma longa tradição golpista. Aconteceu com Deodoro da Fonseca em 1889, de novo em 1891, depois teve a junta militar com Getúlio em 1930, em seguida a deposição de Getúlio em 1945, e ainda teve o golpe de 1964. Esses foram os que deram certo, mas fora esses há exatas 22 tentativas de golpes militares frustrados, terminando com a estabanada tentativa que acabou no 8 de janeiro. O filme me fez pensar nisso e questionar se vale mantermos um Exército tão caro, que, a história mostra, fica trabalhando contra nós mesmos, ou se podemos achar outra maneira para pintar meios-fios" — Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus (2002) e Ensaio sobre a cegueira (2008)
"O filme do Walter Sales é um fenômeno raro que acontece a cada 20 ou 30 anos. É um filme muito bem feito, bem produzido, com imenso carinho, com uma reconstituição de época primorosa com um time de artistas encabeçados pela Fernandinha Torres, excepcional, sobre uma história escrita com paixão por um filho querido (Marcelo Rubens Paiva) e que, além disso tudo, é exibido num momento como este que nós estamos vivendo de radicalizações idiotas e de uma certa insanidade generalizada. Viva o cinema brasileiro!" — Zelito Viana, produtor de Terra em transe (1967) e Cabra marcado para
morrer (1984)
"Penso que a abordagem do Ainda estou aqui e o reconhecimento em certames com alcance mundial ajudam a trazer o tema e ser entendido por uma camada ampla da população — aqui e lá fora — e principalmente a juventude. E tira a ideia de que não vale citar esse assunto. A arte serve para isso: investigar, confrontar, lançar perguntas, reviver nossas histórias. A experiência do cinema, com capacidade de alcance, possibilita importante contribuição para pensar e refletir quem somos, olhar para nosso ado, construir nosso futuro". — José Eduardo Belmonte, diretor de O pastor e o guerrilheiro (2022)
"O filme do Walter Salles é maravilhoso pela sua qualidade narrativa e cinematográfica, sem falar das estupendas interpretações. O filme nos leva a um período recente da nossa história, o qual precisamos nos lembrar ou conhecer. Ainda estou aqui traz à tona uma potente reflexão: enquanto aqueles que cometeram crimes de violência de Estado não forem identificados, julgados e condenados, a mensagem que emitimos é que nossa sociedade aceita a tortura, o sequestro, o assassinato, o ocultamento de cadáver, dentre outros crimes. É por isso que assistimos aos torturadores recebendo salários, promoções e outras benesses ou benefícios pagos com recursos dos nossos impostos, ou seja, com nosso dinheiro. A mensagem que emitimos, enquanto sociedade, é que estes crimes seguem sendo recompensados. Não é isto o que queremos, não é mesmo?" — Tata Amaral, diretora de Hoje (2011)
"O grande mérito de Ainda estou aqui, além de ser um belo filme, é de ter conseguido furar a bolha. Visto por 3 milhões e 500 mil espectadores até agora no Brasil, com prêmio em Veneza, lançado em muitos países, e indicado a três prêmios no Oscar, levou o horror da ditadura brasileira para milhões. O filme exemplifica a força do nosso cinema para falar da nossa história. Muitos filmes, livros e peças de teatro foram escritas até hoje. Nenhum com tal alcance. Então, que venham muitos mais porque precisamos contar nossa história para que a ditadura nunca mais se repita!" — Lucia Murat, diretora de Que bom te ver viva (1989) e Uma longa viagem (2011)
"O filme do Walter Salles e sua repercussão — sucesso de público e crítica — têm uma importância única para a sociedade brasileira, sobretudo num momento no qual o desrespeito às instituições democráticas está recrudescendo. Importante ressalvar que, Ainda estou aqui é, antes de tudo, uma excelente obra de arte cinematográfica". — Bruno Barreto, diretor de O que é isso, companheiro? (1997)
"Um filme como Ainda estou aqui ser lançado 60 anos depois do golpe militar e seguir despertando interesse é seguramente um sinal de que devemos seguir falando e debatendo esse assunto. Enquanto não são realizados e lançados novos filmes, acredito que a análise e revisão possa seguir sendo feita através de tantos outros filmes que foram realizados nas últimas décadas, como a produção de Brasília O outro lado do paraíso, que mostra diversos momentos do golpe militar. Já o impacto que o filme de Walter Salles causou fora do Brasil, principalmente no Festival de Veneza e agora nas premiações americanas, é também muito bem-vindo, uma vez que seguramente irá trazer maior interesse dos players internacionais ao cinema brasileiro". — André Ristum, diretor de Tempo de resistência (2003) e O outro lado do paraíso (2016)
"Ainda estou aqui, com mais de 3 milhões de espectadores no Brasil, o Globo de Ouro da Fernanda Torres e toda sua repercussão internacional, com as indicações ao Oscar, está lançando uma luz poderosa sobre a ditadura militar no Brasil, período de nossa história ainda envolto em trevas. Vários filmes foram produzidos sobre nossos anos de chumbo, mas nenhum deles, nem de longe, chegou a tanta gente. A abordagem de Walter Salles, a partir do livro de Marcelo Rubens Paiva, conseguiu sintetizar aquele momento da vida brasileira em uma grande personagem feminina, vivida de forma magistral pelas duas Fernandas (Torres e Montenegro), atrizes tão queridas pelo nosso público. Espero que os espectadores tocados pelo filme, especialmente os jovens, se interessem por saber mais de nossa história recente, por meio de livros e de outros filmes com abordagens diferentes. Ao contar essa história, o cinema brasileiro também faz história". — Helvécio Ratton, cineasta de Batismo de sangue (2006)