Cinema

Rede periférica: Kasa Branca chega às telas, premiado e cheio de afeto

Premiado no Festival do Rio, o longa Kasa Branca retrata um jovem em crise familiar que encontra solidariedade nos amigos da comunidade

Diego Francisco e Big Jaume, no longa de Luciano Vidigal Kasa Branca
 -  (crédito: Sobretudo Produção, TvZero, Tacacá Filmes, Cavideo e Dualto/Divulgação)
Diego Francisco e Big Jaume, no longa de Luciano Vidigal Kasa Branca - (crédito: Sobretudo Produção, TvZero, Tacacá Filmes, Cavideo e Dualto/Divulgação)

Primeiro diretor negro premiado no Festival do Rio, pelo filme Kasa Branca (recém-lançado em Brasília), Luciano Vidigal, no longa-metragem  de estreia, aposta na mobilização do entorno de um personagem em crise, Dé (Big Jaum), capaz de reformular sentimentos de família. "Vejo que o filme tem essa questão das novas estruturas familiares. Diferentes, em relação ao padrão que a gente via na sociedade nas décadas adas. Vemos, na tela, uma família constituída por um neto, uma avó, e tudo acaba sendo complementado pelos amigos que vão ajudando", observa o protagonista.

Saído de projeto com direção coletiva, como 5xs favela, agora por nós mesmos e Cidade de Deus: 10 anos depois, o diretor Luciano Vidigal, ao retratar o cotidiano no periférico Chatuba (em Mesquita, RJ), se viu premiado no importante Festival do Rio, ao lado de outras conquistas para o filme: melhor fotografia, melhor ator coadjuvante (Diego Francisco) e melhor trilha sonora. Para além das alianças e apoios registrados na tela, nos bastidores, Vidigal contou com o renomado Cacá Diegues como produtor associado do filme.

Ao lado de atores, como Teca Pereira, Babu Santana e Ramon Francisco, e do rapper L7nnon, Big Jaume dá vida ao introspectivo Dé, algo apaixonado pela personagem de Roberta Rodrigues e marcado por solidão. "O Dé vive mais do que um amor platônico, ele vive um amor impossível. Realmente, é um universo bem dentro da cabeça dele. O contexto da vida dele é reprimido, escondido, na juventude não tem com quem falar sobre muita coisa. Os amigos vão zoar... A avó nem fala mais. O pai sumiu. A mãe faleceu. E o cara é um adulto, virou um adulto, e pulou um monte de etapas para se tornar esse adulto", pontua Jaume sobre os dramas projetados em Kasa Branca.

Entrevista // Luciano Vidigal, cineasta 

A relação da avó com o neto diz respeito a quê, quando examina o filme e a tua própria vida?

A inspiração pessoal é total: é uma história real. A história dos meus vizinhos, com a qual fiquei comovido pela relação com a avó em iminência da fase terminal de Alzheimer. E eu percebi, durante o processo do filme, que é muito universal — há muitas pessoas que têm alguém da família com Alzheimer. Eu percebi uma proporção enorme. É uma grande homenagem à minha avó, que se foi há dois anos e que foi a pessoa mais carinhosa do mundo.

A música, o rap e o grafite foram escolhas de quem? Tudo extrapola o consumo em larga escala, não?

Eu me descobri homem preto por meio da música. Eu sempre falo isso. Quando eu escutei Racionais MCs, realmente entendi quem eu era no mundo, assim. Então, o samba também é forte na minha vida como identificação, um movimento musical que me toca muito e com o qual me identifico muito como homem preto. Então, o trap hoje é um movimento que eu acho expressivo. Eu iro muito essa juventude musical brasileira que usa a música como ferramenta política também de reflexão. Tudo que assimilei foi de propósito. Queria muito que tudo isso estivesse no filme. O cinema negro acaba vindo ali: aquele do Spike Lee, de Faça a coisa certa. O cinema negro americano também me influenciou. Ele acopla a musicalidade que me atrai, até por referência. Então, esse grafite, essa música, essas figuras que eu encontrei no muro, em Mesquita, com personalidades pretas, eu tinha que ligar a câmera para aquele lugar. Tudo isso é uma política de afirmação da nossa pele preta como potência.

Trazendo para a questão de moralidade, como percebem a introdução de elementos como traição e roubo, dentro da trama?

Interessante, profunda e filosófica essa pergunta. Cara, acho que a gente tem que ser... Quando a gente fala de humanidade, a gente tem que sempre procurar trazer a verossimilhança e verdade nas construções dos personagens que estão ali na história, né? E essa juventude é uma juventude que me atrai muito. Eu sempre uso uma narrativa teatral, assim que eu aprendi com Nós no Morro, que é onde está o torto. E esse torto tem a ver com a moralidade. A necessidade para muitos deles ali, numa situação difícil, enfim, e que é uma realidade de favela que eu conheço há 45 anos, é beira e moral. Então, até que ponto vem a ética dali, sabe? Mas isso é para humanizar.

O senso de comunidade se sobressai, na tela, aos registros de agressividade e de abordagens criminais. Dá orgulho isso, enquanto artista?

Acho que a grande empatia e o envolvimento com esses personagens está em serem tão amigos. Eles têm uma história de amizade muito bonita. Isso sobressai em qualquer realidade. Então, essa linha tênue entre a moralidade e a imoralidade; a moralidade, a ética, é uma realidade da juventude brasileira periférica, sabe? Então, é prestar atenção nesses julgamentos, né? O que é o certo e o errado? O que é isso? Então, eu acho que o que eles fazem de errado é o torto dramatúrgico que me atrai. Aí, isso é um filme de verdade. Aí, não tem o famoso ar pano.

Como vê as proibições estipuladas na periferias?

Eu acho que a periferia é um verdadeiro quilombo de resistência. A gente vive à margem ali do poder público, governamental, que teria de estar com secretarias de saúde, cultura, educação muito presentes, no ideal de um país melhor nesse lugar. Então, esse lugar de resistência é um lugar de liberdade, é um lugar que tem o nosso dialeto, a nossa própria cultura, a exemplo da era da escravidão, que, mesmo na dor, tinha o seu quilombo como resistência. Prefiro me ver nesse lugar. A periferia é um lugar de resistência e que a gente cria a nossa própria liberdade como um grito político. Acho que é por aí.

O que pesa, na afirmação religiosa encerrada no ritual visto no filme?

Sim, Kasa Branca é cinema negro. Então, eu bebi muito da fonte da matriz africana. Eu tive um ator da Guiné-da-Bissau, que é o William Bechester, que me ajudou muito no Yorubá, na cultura Yorubá ali retratada, e eu queria muito que fosse um filme também ancestral. Então, já que eu não estou sozinho nessa história, estou falando sobre ancestralidade, a espiritualidade da matriz africana está muito presente ali como resistência, como cultura e como um elo histórico.

 

  • O diretor Luciano Vidigal: em Kasa Branca, o cotidiano da periferia ocupa o primeiro plano
    O diretor Luciano Vidigal: em Kasa Branca, o cotidiano da periferia ocupa o primeiro plano Foto: Riofilme./Divulgacao
  • Kasa Branca: drama familiar no RJ
    Kasa Branca: drama familiar no RJ Foto: Riofilme./Divulgacao
  • Cena do filme Kasa Branca: história comunitária
    Cena do filme Kasa Branca: história comunitária Foto: Fotos: Riofilme./Divulgação
Ricardo Daehn
postado em 03/02/2025 10:40 / atualizado em 03/02/2025 10:48
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