Livro

"A Boba da Corte": Tati Bernardi usa acidez contra a elite em romance autobiográfico

A roteirista e escritora solta o verbo no livro A boba da corte, no qual conta a própria trajetória e fala sobre o sentimento de inadequação da menina de Tatuapé em meio à elite intelectualizada paulistana

Tati Bernardi -  (crédito: Bob Wolfensson)
Tati Bernardi - (crédito: Bob Wolfensson)

Quando Tati Bernardi começou a escrever A boba da corte, há três anos, não poupou nomes, nem situações. Aos poucos, foi dosando a realidade. Cinco pessoas viraram uma, nomes e idades foram trocados, o divórcio da autora saiu de cena, assim como a filha, mas nada disso tirou o caráter ácido do livro, que recebeu da editora Fósforo, pelo qual acaba de ser publicado, a classificação de romance autobiográfico. 

A boba da corte é um livro fininho, com pouco mais de 100 páginas, mas cada uma delas leva a marca provocadora da autora. "Fiz uma primeira versão sem me preocupar muito em expor algumas pessoas, eu queria desopilar, e depois mexi, protegendo as pessoas todas, para que não pudessem ser facilmente achadas por quem lê", avisa. O romance autobiográfico de Tati é tão desopilante que deve ser lido de uma vez, em um fôlego só. 

Dividido em seis capítulos, não conta uma história linear, mas acompanha vários momentos da trajetória da garota da Zona Leste paulistana que saiu do Largo do Maranhão, no Tatuapé, para Higienópolis graças a um talento particular para a escrita e, especialmente, para o humor.

É também a história de uma mulher que nunca se sente inteiramente pertencente à elite intelectual paulistana pela qual circula e faz do zombar de si mesma uma lente de aumento sobre uma classe que muito se gaba de seus doutorados e comportamentos inclusivos, mas que não consegue estar totalmente à vontade quando Tatuapé desembarca na sala de jantar. 

Tati não tem problemas em descrever os tipos — dos próprios amigos que pediu para deixarem sua festa de aniversário ao namorado que acalmou o mendigo, mas não consegue lidar com a crise de pânico da parceira —, em contar os delírios do mercado publicitário e em enfrentar as próprias ambiguidades.

A vontade de pertencer e, ao mesmo tempo, a constatação diária de que não faz parte daquele meio funcionam como motor de uma escrita sarcástica e destemida quando o assunto é crítica social.

"É um livro para tirar sarro de uma pessoa que quer ascender e a por alguns momentos meio ridículos, meio forçando a barra e se comportando como a elite da qual ela própria ri da cara. E ela acaba se tornando uma igual. Sem sentir que pertence ao mesmo tempo. Nunca pertence exatamente", avisa a autora. 

A boba da corte é um livro que Tati tinha vontade de escrever há muito tempo, mas não o fazia por medo de ser hipócrita. "Porque é um livro de uma mulher branca, que mora em Higienópolis, colore o cabelo de loiro…", constata.

"O maior medo que eu tinha era de parecer querer forçar uma barra para levantar alguma bandeira. E o livro não é nada disso, o livro é para tirar sarro de mim. É sobre essa vontade que tinha de chegar na elite intelectual paulistana, um pouco essa saga, mas eu tenho tenho aflição de livro que conta a saga de um heroi branco para chegar a algum lugar."

Publicitária, cronista, podcaster e roteirista, Tati transita e transitou por muitos mundos. Colaborou em roteiros como o da novela Sangue bom, do programa Amor&Sexo e da série Meu ado me condena, da TV Globo.

Na literatura, é autora da autobiografia Depois a louca sou eu, adaptado para o cinema por Júlia Rezende, além de fazer crônicas para a Folha de São Paulo. Nos últimos anos, Tati também se encontrou nos podcasts.

Fez sucesso com o Calcinha larga, que apresentava ao lado de Camila Fremder e Helen Ramos e, agora, conduz o Desculpa alguma coisa e o Desculpa o transtorno, com o psicanalista Christian Dunker. Em entrevista ao Correio, Tati fala sobre o livro, mas também sobre humor, ódio nas redes e cancelamento.  

Entrevista //Tati Bernardi

Você diz que tinha medo de o livro parecer hipócrita. Por quê?

É meio ridículo a pessoa branca contando sua saga para chegar em algum lugar, ainda mais porque eu não vim de uma periferia profunda. Estudei em colégio particular, minha família morava na Zona Leste, mas tinha grana, sentido classe média da coisa. Não ei necessidade. Meu medo era parecer a trajetória da heroína branca. O intuito, desde o começo, foi tirar sarro de mim. Só que a elite intelectual Zona Oeste tem muitos personagens maravilhosos de tirar sarro também. Então, é um livro que tem a intenção de falar de comportamento, de classe social. 

É um livro sobre pertencimento também, sobre esse sentimento que é super ambíguo em você. Como essa questão foi importante para o livro?

Eu sinto que existe uma espécie de um não lugar ao qual eu pertenço. Se eu volto hoje para a Zona Leste, onde eu morei até há uns 20 anos, e não era Zona Leste Anália Franco, eu morava ali perto do Metrô Carrão, não é periferia profunda, mas é periferia. Mas quando estou onde eu quero, o tempo inteiro eu sinto que sou inadequada, que me comporto de forma inadequada, que não sou elegante, eficiente, que eu não fiz as coisas que eu deveria ter feito, que não estudei as coisas que deveria ter estudado.

O livro é um romance autobiográfico, uma autoficção, que no Brasil gera sentimentos controversos quanto a ser ou não literatura. Como você lida com isso? 

Eu sou uma escritora de autoficção, porque eu misturo muitas coisas que vivi com coisas mais inventadas para dar um colorido maior, um exagero maior, para ficar mais próximo de histórias que valem a pena ser contadas. E, durante muito tempo, eu sofri preconceito, principalmente, pelo fato de ser mulher. Porque aí tem aquela percepção de que é uma literatura de diário. Tinha até um termo, chick lit, que era bem pejorativo. Mas eu nunca desisti de fazer isso, até porque é o que me dá tesão. A coisa que eu mais escutei na minha vida foi editor homem falando para mim: "Você precisa amadurecer, você precisa fazer seu primeiro livro de ficção. Chega de contar a sua vida." E eu nunca quis parar, porque era onde estava meu tesão, eu queria me narrar. E hoje em dia tá essa febre de mulher que se narra, é um lugar político, a literatura mais quente do momento.

Seu humor tem um tom autodepreciativo. Isso te protege? 

Venho de uma família da zona leste, de pessoas que riam o tempo inteiro de si mesmas e um da cara do outro. É uma literatura que tem essa preocupação de rir de si mesma, isso é um lugar de força para a mulher. E, até para sobreviver a bullying na escola, bullying no mercado de trabalho, eu vejo que isso também era uma proteção. Eu estava me zoando antes de qualquer homem. Eu trabalhei em ambientes muito machistas e ninguém mexia comigo, porque eu tinha feito uma piada pior comigo do que eles poderiam fazer. Isso também me dava um lugar de poder na época que eu entrei no mercado de trabalho.

E tem um certo tom de exagero também na maneira como você adentra o humor. Por quê?

Acho que o exagero me protege muito, porque aí tem uma capa. Uma mesma história que eu conto exatamente como foi, talvez eu me sinta mais protegida e pelada, que é o que eu tento fazer na terapia. O exagero sempre transforma aquela dor num personagem. Eu gosto de provocar nesse lugar da crônica, na escrita. Mas eu separada da escritora, meu lado  objetivo, minha cabeça, estão protegidos porque o exagero é a parte de ficção da autoficção. 

Você ou por alguns episódios de cancelamento e de ataques de haters tanto quando encerrou o podcast Calcinha larga quanto quando começou outro sobre psicanálise com Christian Dunker. Como enfrenta esse lado da internet?

Tem hater que é uma galera mais de extrema direita, apoiadora de Bolsonaro, isso aí eu não ligo. Fui muito xingada pela extrema direita e isso não me afeta, porque o que me afeta são pessoas que eu iro intelectualmente, aquele "fogo amigo". Pessoas mais progressistas. Isso me incomoda. E foi justamente onde eu mais apanhei. As vezes em que eu recebi haters foi sempre de esquerda. Desses que ficam nos trend topping de ódio no Twitter. Quando acabou o Calcinha Larga, veio a fandom das outras apresentadoras me xingar, uma galera muito boba. A galera que me acompanha jamais perderia tempo com isso, porque é um pessoal mais interessante e intelectualizado, não ia ficar no Twitter xingando os outros. Agora, quando eu inventei um podcast com o Christian Dunker e veio um monte de acadêmicos me xingar, dizer quem era eu para fazer um podcast com um acadêmico porque eu não sou acadêmica, aquilo me pegou um pouco. O cara vinha me xingar e tinha três doutorados, será que eu tinha que prestar atenção naquilo? E, depois de um tempo, comecei a achar tão ridículo quanto o fandom das outras apresentadoras.  

O livro teve muita edição, você tirou muita coisa, se arrependeu de coisa que escreveu e voltou atrás e cortou? 

Primeiro, o livro falava muito do meu divórcio e eu eu achei que não cabia, que eu estava falando de outra coisa, então limei toda parte que falava do meu divórcio. E tirei a parte que falava da minha filha. Cada personagem é uma mistura de muita gente. A verdade é que cinco ou seis pessoas, quando colocadas uma do lado da outra, ficam muito parecidas, ainda mais intelectual paulistano. Então, eu achei melhor criar um personagem forte que toma umas duas três. Fiz esse trabalho de juntar. 

Uma mulher que tem coragem de falar ainda causa espanto hoje? Por quê?

Ainda tem uma coisa de uma cobrança. Isso, na direita, é muito escancarado. A direita diz que a mulher tem que ser feminina, do lar, comportada. Mas dentro da esquerda tem a cobrança por uma certa elegância, uma elegância de caráter: a mulher, em vez de ser tão raivosa, devia fazer meditação. Mas quando você manda uma mulher ir para meditação em vez de ser raivosa você não está dizendo nada além do ser recatada e do lar, só que é o jeito disfarçado que a esquerda manda uma mulher ser mais elegante e silenciosa. E acho que tem um pacto que classes sociais fazem e eu estou lá para escancarar esses pactos. Isso incomoda muito. E incomoda por eu ter essa alma meio Zona Leste: a maneira como eu falo, como me comporto, recebo uns olhares de "gente, ela não é uma de nós". E, por eu ser uma escritora, incomodo um pouco mais. 

Você tem 45 anos e o livro também fala um pouco sobre envelhecer. Qual é a parte mais difícil de envelhecer para você e a que mais te alegra? 

Olha, o que alegra a minha vida hoje é que eu tenho uma filha de 7 anos que é o maior amor da minha vida e isso, por si só, já envelhece a gente, porque desde que ela nasceu eu me preocupo 24 horas por dia. Ao mesmo tempo, isso também me rejuvenesce. A maternidade envelhece e rejuvenesce ao mesmo tempo, é muito difícil. Só que tem uma mudança de corpo. Eu pego foto minha de 10 anos atrás, quando eu tinha 35, tem uma mudança de corpo com a idade, tem uma mudança de corpo com a gravidez. E isso, pra ser honesta, apesar de eu dizer que me acho linda, gostosa e que tá tudo certo,  não é fácil. Não sou aquela rata de academia. Agora, tenho que reafirmar todos os dias pra mim a  mulher f... que eu sou. O superego da minha cabeça é profundamente machista e do patriarcado. 

  • Tati Bernardi
    Tati Bernardi Foto: Bob Wolfensson
  • Tati Bernardi
    Tati Bernardi Foto: Bob Wolfensson
  • Tati Bernardi
    Tati Bernardi Foto: Bob Wolfensson
  • Tati Bernardi
    Tati Bernardi Foto: Bob Wolfensson
  • Tati Bernardi
    Tati Bernardi Foto: Bob Wolfensson
  • Tati Bernardi
    Tati Bernardi Foto: Bob Wolfensson
  • Tati Bernardi
    Tati Bernardi Foto: Bob Wolfensson
  • Tati Bernardi
    Tati Bernardi Foto: Bob Wolfensson
  • Tati Bernardi
    Tati Bernardi Foto: Bob Wolfensson
  • Tati Bernardi
    Tati Bernardi Foto: Bob Wolfensson
  • Tati Bernardi
    Tati Bernardi Foto: Bob Wolfensson
postado em 06/04/2025 00:01 / atualizado em 06/04/2025 19:46
x