
Drauzio Varella tinha 60 anos quando pisou pela primeira vez na Amazônia. Foi há 21 anos e ele não esquece o quanto ficou maravilhado. “Quando eu cheguei no Rio Negro, falei: ‘que absurdo! Eu já estive em vários países do mundo e não conheço essa maravilha no meu país’”, lembra. A viagem foi realizada para conhecer um barco-escola da Universidade Paulista, com a qual desenvolvia um projeto de levar à Amazônia cientistas convidados para um congresso em São Paulo. Era um brinde, um docinho para convencer nomes importantes da comunidade científica mundial a participar de um encontro sobre biotecnologia na capital paulista.
Foi um amigo quem sugeriu a viagem. Varella queria trazer grandes pesquisadores e criar uma discussão internacional sobre biotecnologia, mas o Brasil de 1992 estava fora da rota dos maiores pesquisadores da área. “Conversei com um amigo e pedi para ele me ajudar a escolher esses cientistas que dessem um impacto aqui. E ele disse: ‘Olha, vai ser difícil. Essa gente é muito procurada, eles têm convites para viajar pelo mundo inteiro, não vão querer ir para o Brasil, a menos que você ofereça alguma coisa em troca’”, lembra. O médico e escritor ofereceu a Amazônia. Não toda, mas um pedacinho, aquele que a pelo Rio Negro, que nasce na Colômbia e encontra o Solimões, para, juntos, formarem o Amazonas. E deu início a um caso que resultaria em mais de 100 viagens a um território cuja complexidade nunca diminui, não importa a intimidade estabelecida. As histórias dessas expedições pelo Rio Negro são contadas em O sentido das águas, reunião de 62 textos lançada pela Companhia das Letras.
O autor de Estação Carandiru e Prisioneiras gosta muito de descrições e, quando o tema é Amazônia, essa prática é irresistível. Ele se entrega sem muita parcimônia, mas consegue extrair imagens e narrativas que conduzem o leitor por um mundo quase impenetrável. Dos bichos e árvores que deslumbram às histórias humanas que plantam grandes pontos de interrogação na mente do leitor, as crônicas são um convite a descobrir a região, mas também a constatação do quão pouco se sabe e quão grande é o perigo de destruição da floresta e de seus rios. A vontade de Varella é que os relatos ajudem a reduzir a distância entre o leitor e uma das regiões mais preciosas do território brasileiro. “Eu, pelo menos, viajei mais de 100 vezes para lá. Mas as pessoas, normalmente, não conhecem. É um lugar muito importante para o Brasil, um lugar que diferencia o Brasil dos outros países, inclusive. Se eu conseguisse, pelo menos, alfabetizar um pouco aquelas pessoas que não têm ideia do que é aquilo, o livro teria cumprido a sua finalidade”, diz, em entrevista na qual reflete sobre o futuro e a preservação da Amazônia.
O sentido das águas
De Drauzio Varella. Companhia das Letras, 304 páginas. R$ 79,90
Entrevista//Drauzio Varella
Como foi o processo de vasculhar na memória esses 30 anos de viagens e escolher o que contar?
São inúmeras viagens e é difícil selecionar esse material, porque muita coisa vivi na hora, achei muito importante, e talvez fosse mesmo, mas esqueci com o ar do tempo. No meio das viagens, escrevi um pouco, contava uma história, fazia uma descrição. Eu gosto de fazer descrição. O desafio foi conseguir fazer uma boa descrição, fazer com que as pessoas se interessem. Se a descrição for boa, as pessoas têm uma ideia mais clara daquela paisagem ou daquela pessoa. Fui juntando algum material, mas fiquei sempre muito tímido porque achava que precisava mais do que isso para escrever sobre essa região.
Por quê?
É uma região de altíssima complexidade, com uma longa história, problemas sociais incríveis, distâncias enormes a serem percorridas, toda a sorte de dificuldades de sobrevivência, de atenção. Eu nunca me achei preparado para escrever. Por outro lado, pensei: se eu fizer um caderno de viagens contando coisas que eu vi lá, eu posso dar uma ideia um pouco melhor do que é a região do Rio Negro, porque as pessoas não conhecem, não sabem nada. Se elas não sabem nada, eu pelo menos sei um pouquinho e, se eu conseguir transmitir o pouco que eu sei, vai ser uma vantagem para quem não tinha ideia. Comecei a escrever o livro com essa finalidade.
Por que publicar o livro agora? Há uma urgência em falar da Amazônia?
Escrevi agora, primeiro, porque não posso mais esperar. Eu tenho 81 anos de idade, não sei quanto tempo ainda tenho de cognição ativa para escrever. E depois, eu já tinha algumas histórias escritas e tinha que aproveitar essa oportunidade para tentar explicar para as pessoas o que é a floresta amazônica, o que é a região do Rio Negro. Não para discutir teoria, o livro não tem essa pretensão de jeito nenhum. Mas para tentar contar para as pessoas o que eu aprendi lá, de modo que servisse como um professor dando uma aula. Eu queria fazer um livro popular, que as pessoas pudessem ler. Claro que eu não tive a pretensão de fazer um estudo antropológico das populações, nem um estudo da geografia da região, da composição, nada disso, não é um livro científico.
O que a Amazônia te ensinou, como a região te transformou como médico e como escritor?
Eu aprendi o papel que a medicina deve ter para essas populações situadas a grandes distâncias. Porque as distâncias lá são amazônicas, né? Desculpe o trocadilho, mas são enormes. Como é que você leva a assistência médica para lá? Olha o tamanho do desafio, os problemas que o SUS tem que enfrentar num país como o nosso. Desde as periferias de cidades, de grandes aglomerações urbanas, até lugares como esses, em que as pessoas ficam dispersas em áreas enormes. Isso dá uma ideia melhor do desafio que é organizar um sistema único de saúde no Brasil. E você tem que levar serviços sociais, porque todos os brasileiros têm os mesmos direitos sociais. Isso me deu uma visão muito interessante do país, muito realista das dificuldades todas. E do ponto de vista das desigualdades sociais, do contato com as pessoas, eu aprendi muito, porque tem todo um lado que a gente chama na literatura de realismo fantástico. Naqueles locais, há uma mistura inseparável da realidade com a ficção, porque é uma região cheia de mitos. O real e o imaginário convivendo, andando de mãos dadas por toda a extensão da floresta, é muito interessante, é muito bonito, muito poético.
É um livro que fala de muitas coisas: pessoas, natureza, garimpo, saúde, botânica. Como você acha que isso pode despertar o leitor para a importância desse bioma e ser popular ao mesmo tempo?
A pretensão que eu tive foi de levar esse conhecimento de uma forma agradável, de uma forma que chamasse a atenção. Estação Carandiru foi meu primeiro livro, não tinha nenhuma experiência como escritor. Eu escrevia coisas de medicina, mas livro assim, nenhum. E teve um grande sucesso, foi muito vendido, mais de 1 milhão de pessoas leram, teve um impacto no sistema prisional, a cadeia foi implodida. A escrita tem esse poder de modificar as coisas. Aí gente diz: "Mas isso foi uma época em que as pessoas liam". É, mas o Brasil tem 220 milhões de habitantes. Se você tem um público leitor de 1%, é muita gente. A gente menospreza o poder da literatura, que é muito grande. E tem mais gente rodando imagens no celular o tempo inteiro para ter aqueles pequenos picos de dopamina que te tornam dependente desse tipo de tecnologia. Não serão essas pessoas que vão modificar o mundo. Esses serão consumidores de imagens e de textos baratos. Os que vão modificar o mundo são aquelas que vão entender a realidade, vão se opor a essa realidade, vão combatê-la ou vão tentar a apoiá-la, se for o caso. E aí a literatura tem um papel enorme, porque quando você lê um livro, você fica muito tempo em contato com aquela história e isso mexe com um universo cognitivo diferente, que é a imaginação.
O que é mais importante de se falar hoje sobre a Amazônia. Qual é a tecla que a gente mais tem que apertar nesse momento?
Eu acho que é entender por que a floresta deve ser preservada. E oferecer condições de sobrevivência para as pessoas que vivem lá. Se você não fizer isso, o que elas vão fazer? Elas vão tentar sobreviver. Se a chance é cortar árvores de madeira de qualidade para vender, vão fazer isso. Se a condição é ar um arrastão pelos rios para pegar a maior quantidade de peixe para vender, elas vão fazer isso também. Nós temos que criar condições de sobrevivência para as populações amazônicas. Essa é a região do país que é mais desprezada pelas autoridades e por nós também. Na nossa ignorância, não sabemos nada e não temos interesse em saber. Todo mundo sabe o que é o Cristo Redentor, o Corcovado, a calçada de Copacabana. Desculpe, a calçada de Copacabana é muito bonita, interessante e tal, mas quando você pensa na floresta que nós temos, tem alguma coisa errada aí, não é? É um conhecimento até irrelevante do ponto de vista social quando temos uma imensidão de país lá para cima, que esteve muito tempo abandonado.
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