
Saleh N., um estudante de medicina em Latakia, cidade situada na região ocidental da Síria, às margens do Mar Mediterrâneo, contou ao Correio que presenciou um "caos indescritível e tiroteios" pelas ruas. "Nossos familiares tiveram suas casas roubadas e foram atacados. Dois jovens de nossa igreja foram assassinados. Vi uma pessoa amarrada a um carro e arrastada viva. Amigos que moram na área rural tiveram seus parentes executados", relatou. Imagens divulgadas pelas redes sociais, cuja autenticidade não pôde ser confirmada, mostram corpos amontoados nas ruas, civis desarmados executados a sangue-frio e sírios da minoria alauíta sendo obrigados a engatinhar e rastejar.
Três meses depois da queda e da fuga do ditador Bashar Al-Assad, o horror retornou à Síria. Desde quinta-feira (6/3), uma matança de civis e confrontos entre as forças de segurança do governo interino e homens leais a Al-Assad deixaram 1.454 mortos, de acordo com a organização não governamental Observatório Sírio para os Direitos Humanos (OSDH) — 973 alauítas e 481 soldados e combatentes pró-Assad.
Relatos sustentam que famílias inteiras — em até três gerações — foram exterminadas. O presidente interino sírio, Ahmad al Sharaa, anunciou a criação de uma "comissão independente" para investigar os massacres. O OSDH acusa as forças simpatizantes de Al-Assad e grupos aliados pela matança de alauítas. "O que está acontecendo no país (...) são desafios que eram previsíveis. Temos que preservar a unidade nacional, a paz civil, tanto quanto possível e, se Deus quiser, seremos capazes de viver juntos neste país", declarou Al Sharaa, durante discurso em uma mesquita em Damasco, onde protestos em memória dos mortos terminaram em violência.
Pouco depois, em vídeo publicado pela agência de notícias estatal síria Sana, o presidente prometeu justiça. "Vamos responsabilizar firmemente e sem indulgência todos os envolvidos no derramamento de sangue de civis", afirmou.
Na rede social X, o secretário de Estado norte-americano, Marco Rubio, disse que os Estados Unidos condenam os "terroristas islâmicos radicais, incluindo jihadistas estrangeiros, que assam pessoas no oeste da Síria". "Os EUA apoiam as minorias religiosas e étnicas da Síria, incluindo suas comunidades cristã, drusa, alauíta e curda, e oferecem condolências às vítimas e famílias", escreveu. "As autoridades interinas da Síria devem responsabilizar os autores desses massacres contra as comunidades minoritárias."
Em entrevista à agência de notícias -Presse, Rihab Kamel — uma mulher alauítas de 35 anos da cidade de Baniyas (oeste) — relatou que se escondeu por 48 horas no banheiro de sua casa com a família, enquantos homens das forças de segurança do novo governo vasculhavam o bairro em busca de membros da minoria religiosa. "Quando conseguimos fugir do nosso bairro de Al Qusur, vimos as ruas cheias de cadáveres", disse. "Que crime as crianças cometeram? Será que elas também apoiam o regime (derrubado)? A comunidade alauíta é inocente", acrescentou a mulher, que recebeu abrigo de uma famíliua cristã.
De acordo com Mostafa Minawi, professor do Departamento de História da Universidade Cornell (nos Estados Unidos), o que começou como emboscadas por simpatizantes de Al-Assad contra forças do governo sírio rapidamente se transformou em pogroms (perseguição deliberada de grupo étnico ou religioso) anti-alauítas. "Os vídeos e imagens vindos de Latakia e região são horríveis. Para uma opinião pública bombardeada pela violência contra civis palestinos nos últimos 17 meses, o mundo tornou-se insensível à documentação dos ataques a civis sírios e da violação do direito humanitário internacional", afirmou ao Correio, por e-mail. A reportagem apurou que muitos alauítas fugiram para a floresta, enfrentando frio e fome.
Minawi lembra que, quando uma ditadura se perpetua no poder, cria seus próprios simpatizantes, que constroem influência auxiliando as medidas opressivas do regime. "Era normal e esperado que esses elementos tentassem resistir a mudanças. Infelizmente, esses incidentes expam a fraqueza do novo governo, incapaz de controlar suas milícias."
O ativista pró-democracia e analista político sírio-americano Ammar Abdulhamid explicou ao Correio que muitos simpatizantes de Al-Assad não receberam qualquer perdão pelo envolvimento no derramamento de sangue cometido sob o regime extinto. "Essas pessoas não têm escolha, a não ser continuar lutando. Alguns fatores os ajudaram a recrutar homens para os massacres. Em primeiro lugar, a decisão do novo governo de demitir funcionários públicos, muitos dos quais eram alauítas que se viram sem renda e em péssimas condições de vida. Um segundo fator é o fracasso do governo em incluir moradores no policiamento e na istração de assuntos locais. Além disso, existe uma instigação do Irã no financiamento da chamada resistência contra o novo governo. Esses três fatores se combinaram para criar as condições para uma insurgência alauíta."
Abdulhamid acrescentou que os ataques e emboscadas dos rebeldes alauítas contra forças do governo (sunitas) foram a gota d'água para habitantes também sunitas das áreas costeiras, os quais foram vítimas do regime de Al-Assad por 14 anos. "É por isso que muitos deles se mobilizaram e começaram a atacar bairros e vilarejos alauítas", observou. O analista adverte para o "risco real de nova guerra civil". "Há muitos atores domésticos e regionais com agendas e ambições conflitantes. Mas também há razões para crer que isso possa ser evitado. Os líderes atuais estão dispostos a itir erros e a punir os responsáveis pelo massacre."
EU ACHO...
"Os horrores que estamos testemunhando contra a população alauíta não seriam uma consequência inevitável da queda do regime de Al-Assad, caso o atual governo sírio cumprisse suas promessas de proteger as minorias da violência vingativa. Há uma falha da comunidade internacional em exercer pressão sobre a atual istração para que tais pogroms sejam evitados. Preocupo-me que estejamos entrando em uma era em que veremos cada vez mais esse tipo de violência contra civis ao redor do mundo."
Mostafa Minawi, professor do Departamento de História da Universidade Cornell
"A melhoria das condições de vida contribuirá muito para dar ao povo sírio esperança e fornecer ao governo interino ferramentas para trabalhar pela reconciliação nacional. Isso exige a remoção de todas as sanções. A ideia de que as sanções poderiam ser usadas para obter concessões dos líderes atuais faz sentido apenas no papel. Na prática, a menos que a nova liderança seja capaz de melhorar as condições de vida e se envolver na reconstrução, não será capaz de criar as condições necessárias para a reconciliação e estabilidade nacional."
Ammar Abdulhamid, ativista pró-democracia e analista político sírio-americano