CARDIOLOGIA

O que aconteceu com coração de homem que correu 366 maratonas consecutivas

Em 2023, Hugo Farias se tornou recordista mundial ao completar 366 maratonas consecutivas e participou de um estudo que monitorou as mudanças em seu coração ao longo de mais de 15 mil quilômetros percorridos

Hugo durante testes no InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP) -  (crédito: Divulgação)
Hugo durante testes no InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP) - (crédito: Divulgação)

Fazer qualquer atividade diariamente por mais de um ano já exige bastante disciplina — imagine ar algumas horas todos os dias se dedicando a um hobby: pintando, cuidando de plantas, tricotando… Sem falhar um só dia.

Para Hugo Farias, o objetivo era ainda mais ousado: percorrer 42,195 quilômetros - uma maratona inteira, por 366 dias.

Hoje com 43 anos, Hugo trabalhou 22 deles no setor privado, como gestor executivo de grandes contratos de operações tecnológicas. A decisão de pedir demissão e focar sua vida em um desafio esportivo surgiu de um incômodo que foi crescendo aos poucos.

"Chegou um momento em que eu parei e pensei: será que eu vim ao mundo só pra isso? Pra repetir essa rotina por 35, 40 anos? E se for, tudo bem. A gente aprende desde cedo: escolher uma carreira antes dos 18, se especializar, entrar no mercado, buscar estabilidade, construir família, se preparar para aposentadoria. Mas eu comecei a sentir que podia fazer algo mais. Inspirar pessoas de uma forma diferente. Mas... o quê?"

"Sempre fui muito fã do Amir Klink — o navegador brasileiro que cruzou o Atlântico Sul remando, em 1984. Eu pensei: Tá aí. Acho que posso modelar essa jornada do Amir. Só que, em vez de navegar... eu vou correr."

Hugo queria deixar uma marca, e por isso, buscava um feito inédito. Descobriu que um atleta belga, Stephen Engels, já havia corrido 365 maratonas em um ano - e assim decidiu criar um plano com um dia a mais.

"E olha: eu não era nenhum grande atleta. Tinha corrido só uma maratona na vida. Comecei a correr em 2019, meu histórico era recente. Mas a vontade de escrever uma nova histórias, de causar impacto através do esporte… Só crescia dentro de mim."

Hugo começou a desenhar um plano que exigia uma organização minuciosa por oito meses — envolvendo logística, treinamento, apoio da família e de vários profissionais.

"Sabia que não conseguiria sozinho. Montei uma equipe multidisciplinar: médicos, profissionais do esporte como treinador, fisioterapeuta, além de psicóloga... Convidei diferentes figuras para o projeto, e uma delas foi o Instituto do Coração, o InCor."

"Perguntei se eles poderiam me acompanhar, ver como meu coração reagiria a esse esforço: se ia aumentar, diminuir, desenvolver arritmias, alguma adaptação... Queria também gerar alguma contribuição científica — e felizmente o InCor topou."

Hugo completou o desafio em 28 de agosto de 2023. Foram cerca de 1590 horas percorrendo os 15.569 quilômetros totais - um feito que o colocou no Guinness World Records como o recordista mundial de maratonas consecutivas.

O que o estudo mostrou sobre o coração de Hugo após 366 maratonas

Maria Janieire Alves, cardiologista e pesquisadora envolvida no estudo, conta que o acompanhamento do atleta virou projeto de pesquisa, ando por um comitê de ética.

"É a forma correta e segura de conduzir algo assim, ainda mais se tratando de um projeto inovador, algo que ninguém havia feito, e que poderia ter impacto relevante no coração."

O processo teve início com uma avaliação nos moldes da pré-participação esportiva. "Estabelecemos limites baseados principalmente no volume, e não na intensidade, para que ele conseguisse completar o desafio sem risco cardiovascular. Ao longo de todo o percurso, monitoramos marcadores sanguíneos de dano miocárdico, realizamos ecocardiogramas e testes cardiopulmonares", afirma Alves.

Hugo ou por avaliações mensais com ergoespirometria (teste de esforço que mede o consumo de oxigênio e a capacidade cardiorrespiratória) e, a cada três meses, realizou ecocardiogramas (exame de imagem que avalia a estrutura e o funcionamento do coração). "A ideia era acompanhar as adaptações cardíacas — tanto em larga escala quanto em nível microscópico — e observar possíveis sinais de desarranjo, adaptação ou desadaptação ao treinamento físico."

Os resultados foram publicados na revista científica Arquivos Brasileiros de Cardiologia.

Segundo a médica, as conclusões mostram que apesar da frequência e do volume do exercício, não houve alteração nos marcadores de troponina, que indicam dano miocárdico.

"Foi a principal descoberta do estudo. É possível adaptar o coração a uma carga atlética de grande volume, desde que a intensidade seja moderada."

O cardiologista esportivo Filippo Savioli - que não fez parte do estudo ou acompanhou Hugo profissionalmente - avalia que, no estudo, o achado mais notável reside na ausência de remodelamento cardíaco patológico (mudanças anormais na estrutura do coração, geralmente causadas por esforço excessivo ou doenças), mesmo após 366 maratonas consecutivas — uma carga sem precedentes em termos de volume e frequência.

Ele ressalta que os resultados indicam adaptação cardiovascular (ajustes do sistema circulatório ao esforço) foi predominantemente fisiológica (natural e saudável, e não indicativa de doença).

"Isso reforça a ideia de que o coração do atleta treinado pode tolerar estresses extremos, desde que dentro de uma faixa de intensidade segura e com adequada recuperação entre sessões."

O cardiologista explica que Hugo correu em intensidade moderada, com frequência cardíaca média de 140 bpm — cerca de 70 a 80% da frequência máxima estimada para a sua idade. "Isso o manteve numa zona segura de esforço, onde o corpo ainda consegue equilibrar bem o uso de oxigênio e a produção de energia."

Segundo Savioli, "correr nessa faixa reduz o risco de danos ao coração, como inflamações, cicatrizes ou arritmias", mesmo com tanto volume. Ele ressalta que, se Hugo tivesse feito o desafio em alta intensidade, os efeitos poderiam ser negativos: "Exercícios intensos por muito tempo aumentam o risco de fibrose no coração e arritmias."

Hugo considera surpreendente a adaptação de seu corpo ao esforço físico. E perceber que "Claro que trata-se de um relato científico, apenas — eu sou um entre bilhões. Mas eu acho que isso traz bastante informação sobre a capacidade do corpo humano, principalmente você se conhecer melhor. Eu adquiri um condicionamento que eu jamais imaginei que eu teria na vida. E ver que não teve nenhuma sequela foi importantíssimo."

Mas o cardiologista Filippo Savioli alerta que tentar algo parecido sem adaptação e acompanhamento médico é perigoso. "O risco é considerável e desaconselhado", diz. Sem preparo, há chances reais de lesões graves, como arritmias, inflamações ou até morte súbita.

Hugo durante testes no InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP)
Divulgação
Hugo durante testes no InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP)

366 maratonas: o preparo do corpo e mente

Casado e pai de dois filhos, Hugo conta que escolheu começar o trajeto sempre pela manhã para ter tempo de ficar com a família e realizar os cuidados de recuperação ou fortalecimento muscular no restante do dia.

Ele fez a maioria das maratonas na mesma rota na cidade de Americana, no interior de São Paulo.

"Eu decidi fazer sempre o mesmo trajeto por alguns motivos. Primeiro: minha cabeça já sabia o que vinha pela frente. Eu conhecia cada subida, cada curva. Segundo: os pontos de parada e hidratação. Ao longo de um ano, você precisa parar — para ir ao banheiro, pegar mais água… E o terceiro motivo, pra mim, foi o mais importante: ibilidade. Queria inspirar pessoas, e que elas soubessem quando e onde me encontrar. Ao longo dessa jornada, mais de 5 mil pessoas correram comigo."

Hugo conta ter feito uma análise de riscos: "Eu poderia me lesionar? Sim. Ser atropelado? Sim. Ter algum problema familiar? Sim. Mapeei tudo isso, e tracei um plano de ação para cada cenário"

"Enfrentei de tudo: frio, calor, chuva, trânsito, caminhão ando muito perto... Lesões, três quadros de diarreia — o pior durou cinco dias. Nesse período, perdi 4kg. Foi preciso ajustar alimentação, hidratação. Mas seguimos."

Hugo também enfrentou algumas lesões ao longo do ano. Teve uma fasceíte plantar — uma inflamação dolorosa na sola do pé, comum em quem corre longas distâncias — por volta da maratona de número 120. Depois, por volta da maratona 140, desenvolveu uma pubalgia, uma lesão na região da virilha que afeta tendões e músculos do abdômen inferior e da parte interna da coxa.

"A pubalgia foi uma das piores fases. Uma lesão muito dolorosa. Mas como eu não podia parar, fiz recuperação ativa: caminhei 10 horas por dia durante cinco dias, segurando uma sacola com gelo na virilha. Depois fui voltando aos poucos: caminhar, trotar… até conseguir correr os 42 km de novo."

O acompanhamento psicológico também fez parte da rotina.

"Eu troquei uma carreira consolidada por algo totalmente incerto. E claro que isso gera ansiedade, insegurança. Então ter uma profissional com esse olhar independente foi importante para aliviar o peso e manter o foco."

gráfico com números do projeto de Hugp
BBC

Dois anos após concluir o projeto, Hugo escreveu um livro sobre a experiência — 'Nunca é Tarde Para Escrever Uma Nova História' —, correu outras maratonas e ultramaratonas, e agora planeja seu próximo desafio: ser o primeiro humano a correr toda a extensão das Américas, de Prudhoe Bay, no Alasca, até Ushuaia, na Terra do Fogo.

"A ideia é fazer isso em dez meses, trezentos dias — o que dá, em média, 85 quilômetros por dia."

Ele também quer transformar a jornada em um documentário para inspirar futuras gerações, mas ainda busca recursos para montar uma equipe de filmagem e um motorhome equipado.

"O objetivo é gerar uma grande conscientização global sobre os benefícios da atividade física e de que o ser humano é capaz de coisas incríveis. Ninguém precisa correr uma maratona por dia, mas cada um precisa acreditar de verdade em seu potencial."

Hugo cruzando a linha de chegada da maratona 366 ao lado de sua família
Clayton Damasceno
Hugo cruzando a linha de chegada da maratona 366 ao lado de sua família

Gráfico por Caroline Souza, Equipe de Jornalismo Visual da BBC Brasil

BBC
Giulia Granchi - Da BBC News Brasil em Londres
postado em 26/05/2025 18:26 / atualizado em 26/05/2025 21:51
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