
A utilização do Brasil como uma espécie de "berçário" de espiões russos voltou à tona na semana ada após a publicação de uma reportagem do jornal norte-americano The New York Times.
Segundo o jornal, uma investigação liderada pela Polícia Federal brasileira identificou pelo menos nove supostos espiões russos que usaram documentos brasileiros como parte dos seus disfarces. A informação foi confirmada pela BBC News Brasil.
Apesar de ter voltado a chamar atenção nos últimos dias, o caso é relativamente antigo e, parte dele, foi revelado pela BBC News Brasil em reportagens entre os anos de 2022 e 2024.
Com base em documentos e depoimentos colhidos ao longo de meses, a BBC News Brasil revelou, por exemplo, como a Rússia orquestrou uma operação diplomática para retirar um dos seus supostos espiões da prisão e levá-lo de volta ao seu país natal.
Fontes ligadas à investigação com quem a BBC News Brasil conversou nos últimos dias informaram que dos nove supostos espiões russos identificados até o momento, apenas um continua em solo brasileiro: Sergey Cherkasov. E foi com ele que essa intrincada rede de disfarces veio à tona e começou a ruir.
Uma rede que, segundo as investigações, utilizava disfarces inusitados. Um dos supostos espiões atuaria como dono de uma joalheira em Brasília, outro seria um estudante e apaixonado pelo forró enquanto uma outra atuaria como modelo.

A descoberta
Em abril de 2022, Sergey Cherkasov foi detido em Amsterdã, na Holanda, quando tentava entrar no país e mandado de volta ao Brasil.
Ele se apresentava como o brasileiro Victor Muller Ferreira e havia sido aprovado em um programa de estágio no Tribunal Penal Internacional, em Haia.
As investigações conduzidas por holandeses, americanos e brasileiros apontam que Cherkasov era um agente do GRU, um dos serviços de inteligência das Forças Armadas russas.
Devolvido ao Brasil, Cherkasov foi preso, processado e condenado a 15 anos de prisão no Brasil por uso de documento falso. Sua pena, no entanto, foi reduzida para cinco anos. Ele hoje se encontra preso em uma penitenciária federal, em Brasília. No processo, ele itiu ter se ado por brasileiro, mas sempre negou ser um espião.
Poucos meses depois, em novembro de 2022, a polícia norueguesa prendeu outro "brasileiro".
Seu nome era José de Assis Giammaria, mas as autoridades do país europeu afirmam que ele se chamava, na verdade, Mikhail Mikushin e seria um espião russo infiltrado em uma universidade na região do Ártico, na fronteira entre Noruega e Rússia.
O terceiro caso surgiu pouco depois, no final de 2022, depois que uma brasileira reportou o desaparecimento de seu namorado, o também "brasileiro" Gerhard Daniel Campos.
As autoridades, no entanto, alegam que Campos, na realidade, seria outro espião russo cujo verdadeiro nome é Artem Shmyrev. Ele deixou o Brasil pouco antes de a Polícia Federal deflagrar uma operação para prendê-lo e ele nunca mais foi visto.
A reportagem do The New York Times enumera outras seis pessoas que teriam usado documentos brasileiros como parte de seus disfarces: Yekaterina Leonidovna Danilova, Vladimir Aleksandrovich Danilov, Olga Igorevna Tyutereva, Aleksandr Andreyevich Utekhin, Irina Alekseyevna Antonova e Roman Olegovich Koval.
Utekhin, por exemplo, segundo as investigações, se disfarçava em Brasília como empresário do ramo de joias.
Outra suposta espiã, cujo nome brasileiro seria Maria Isabel Moresco Garcia atuaria como modelo.
De acordo com as investigações da Polícia Federal, nenhum dos supostos espiões identificados até agora colhiam informações sobre o Brasil.
A agem pelo país, segundo o que se apurou, fazia parte de uma estratégia de criar um disfarce sólido o suficiente para não chamar atenção nos países onde, de fato, os agentes deveriam realizar as suas missões.
Cherkasov, por exemplo, ou pelo Brasil, mas também morou na Irlanda e nos Estados Unidos, onde chegou a morar a poucos quilômetros da sede da Agência Central de Inteligência (CIA).
Em março de 2023, a BBC News Brasil revelou como Cherkasov teria, segundo as investigações, "esquentado" documentos brasileiros com o auxílio de uma funcionária de um cartório.
De acordo com os documentos obtidos pela BBC News Brasil, Cherkasov teria oferecido um colar de US$ 400 para que a funcionária o ajudasse. Não havia indícios, no entanto, de que ela soubesse que Cherkasov seria um espião a serviço do governo russo.
Ao longo dos últimos anos, a Embaixada da Rússia no Brasil nunca atendeu os pedidos de resposta feito pela BBC News Brasil sobre o caso.
O mais próximo que o governo russo chegou de itir que alguém desse grupo de nove pessoas era, de fato, um espião foi quando Mikhail Mikushin foi incluído em um acordo de troca de prisioneiros entre a Rússia e os Estados Unidos, em agosto de 2024.

Os "ilegais"
Sergey Cherkasov, Mikhail Mikushin, Artem Shmyrev e outros seis identificados pela PF brasileira são suspeitos de pertencer a um exemplo clássico de agente secreto infiltrado amplamente adotado pela Rússia desde que o país ainda fazia parte da União Soviética e celebrizado pela teledramaturgia, como no seriado The Americans. Eles são conhecidos como "ilegais".
Eles não apenas mudam de nome, mas adotam novas nacionalidades, profissões, personalidades, hobbies e interesses e até mesmo criam laços familiares e de amizades ao longo de anos ou mesmo décadas.
É comum que eles formem casais durante o treinamento. O processo de trabalhar no exterior por décadas sob disfarce pode causar imensa tensão e, portanto, ter um parceiro que conhece seu trabalho costuma ser visto como uma vantagem.
Centenas de diplomatas russos foram expulsos desde a invasão da Ucrânia, muitos considerados espiões. As redes de espionagem foram atingidas.
Nos casos detectados no Brasil, as investigações até o momento apontam como os supostos espiões teriam tentado se manter acima de qualquer suspeita.
Cherkasov, por exemplo, chegou a fazer aulas de forró enquanto morou em São Paulo, de acordo com as investigações brasileiras.
Além disso, segundo o FBI, Cherkasov chegou a pedir permissão aos seus superiores para se casar com uma mulher que não tinha treinamento como oficial de inteligência.
"Eu disse que se eu não me casar neste ano, nós estaremos com certeza acabados. A mulher não pôde ar mais", teria afirmado Cherkasov em uma conversa encontrada pelos investigadores.
Ainda de acordo com o FBI, o fato de que seria preciso Cherkasov pedir permissão para casar mostraria o nível de controle que seus superiores teriam sobre sua vida pessoal.
Shmyrev, por sua vez, teria mantido um relacionamento com uma brasileira até pouco antes de desaparecer, em janeiro de 2023.
No Rio de Janeiro, segundo os investigadores, ele seria conhecido por ter uma empresa de impressão em 3D que teria realizado serviços para órgãos públicos como os comandos do Exército, da Marinha e para o Ministério da Cultura.
Segundo esses relatos, apesar do relacionamento com sua namorada brasileira, ele seria casado com outra suposta espiã russa chamada Irina Romanova, que viveria na Grécia sob o nome falso de Maria Tsalla e que também teria mantido um relacionamento amoroso no país. Ela também desapareceu, e as suspeitas são de que os dois teriam fugido juntos.
O parceiro de "Maria" em Atenas aparentemente foi informado por ela por uma mensagem de texto que ela estava saindo.
Acredita-se que Irina tenha sido chamada de volta pelo SVR por medo de ter sido identificada. Acredita-se que as autoridades gregas a estivessem observando ou investigando.
Ela partiu deixando sua loja e seu gato para trás o que pode indicar a pressa com que se desligou.
Nos últimos anos, oficiais de inteligência acreditam que a GRU se tornou mais ativa - e agressiva.
A GRU é suspeita de ter enviado uma equipe de agentes sob identidade falsa para matar Sergei Skripal em 2018, em Salisbury, no Reino Unido. A Rússia, no entanto, nega seu envolvimento neste caso.
O principal trabalho dos agentes, no entanto, é coletar informações e realizar atividades de apoio às Forças Armadas da Rússia.
Normalmente, quando são pegos, o governo russo trabalha para levá-los de volta à Rússia por meio de algum tipo de acordo - geralmente uma troca de espiões.
Foi o que aconteceu com um grupo de russos presos nos EUA em 2010, que foram trocados por agentes detidos em prisões russas por espionagem.
Mas por que o Brasil?
Integrantes da comunidade de inteligência brasileira, investigadores e pessoas que conhecem o sistema de registro cartorial no Brasil pontuam três motivos que talvez tenham levado o Brasil a ser um dos países escolhidos pela Rússia como "berçário" para seus espiões.
- fragilidades dos sistemas de emissão e controle de documentos no Brasil;
- histórico de não envolvimento do país em conflitos internacionais;
- população miscigenada
No caso de Cherkasov, sua certidão teria sido expedida em abril de 1989 em um cartório do Rio de Janeiro.
Foi a partir dessa certidão, segundo as investigações, que teria conseguido obter carteira de identidade, carteira nacional de habilitação, aporte e até o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS).
No caso de Mikushin, sua certidão de nascimento foi emitida em um cartório da cidade de Padre Bernardo, no interior de Goiás, município com pouco mais de 35 mil habitantes.
Com o documento em mãos, ele teria conseguido se ar por um estudante universitário brasileiro e concluído a graduação e o mestrado em duas universidades canadenses diferentes, antes de partir para sua última missão: atuar junto a um grupo de pesquisadores noruegueses que estudam ameaças e guerras híbridas.
"Quando soubemos do caso, nós fomos aos livros do cartório e verificamos que a certidão é original e que ela está na ordem exata de emissão. Não conseguimos descobrir como é que ela foi parar nas mãos dessa pessoa e como ele conseguiu, depois, todos os outros documentos", disse à BBC News Brasil a oficial do cartório de registro civil de Padre Bernardo, Eloália Nunes Ferreira, em maio de 2023.
Um integrante da comunidade de inteligência brasileiro disse à reportagem em caráter reservado que as certidões usadas pelos dois supostos espiões identificados até agora são, de fato, materialmente verdadeiras.
Isso quer dizer que elas não foram forjadas, rasuradas ou submetidas a algum tipo de adulteração.
Segundo essa fonte, isso indicaria que essas certidões foram, efetivamente, emitidas pelos cartórios ou tabelionatos brasileiros, mas ainda não se sabe exatamente como os russos conseguiram obtê-las.

Batalha pelo espião
A prisão de Cherkasov no Brasil colocou o país em meio a uma disputa entre os Estados Unidos e a Rússia pelo destino do primeiro suposto espião identificado no Brasil.
Em agosto de 2022, poucos meses após a prisão dele no Brasil, o governo da Rússia pediu a extradição de Cherkasov para o seu país natal.
O país, como era esperado, não declarou que ele fosse espião. O pedido alega que Cherkasov seria, na realidade, um traficante de drogas procurado na Rússia.
Com base nesse pedido, o STF autorizou a entrega de Cherkasov ao governo russo, mas a entrega ainda não aconteceu porque o Tribunal condicionou a partida dele ao fim de outras investigações conduzidas pela Polícia Federal sobre sua atuação no Brasil.
Por outro lado, o governo dos Estados Unidos também pediu a extradição de Cherkasov alegando que ele teria atuado ilegalmente como agente de inteligência durante os anos em que morou naquele país.
Em 2023, a BBC News Brasil reportou que os governos brasileiro e norte-americano discutiram um possível acordo prevendo a entrega de Cherkasov caso os Estados Unidos cumprissem um pedido de extradição feito pelo Brasil contra o blogueiro Allan dos Santos, apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e investigado no Brasil por ataques a autoridades.
O acordo não foi adiante e, em março de 2024, os Estados Unidos negaram a extradição do blogueiro.
Uma das informações reveladas pelo The New York Times e confirmada pela BBC News Brasil foi uma estratégia usada pela Polícia Federal brasileira e por autoridades uruguaias que, na prática, dificultou a atuação desse grupo de espiões no futuro.
Brasil e Uruguai emitiram alertas aos 196 países da Interpol solicitando informações sobre cinco dos oito supostos espiões.
Os dados, agora, estão no banco de dados da Interpol e podem ser usados por autoridades policiais e de imigração ao redor do mundo para identificar uma eventual próxima parada do grupo.
