
"Nem Deus pode mudar o ado."
O presidente russo, Vladimir Putin, parece determinado a provar que o poeta grego Agatão (448 a.C. – 400 a.C.) estava errado ao proferir essa frase.
O presidente russo persiste em sua estratégia de reescrever o ado de seu país e reabilitar uma das figuras mais controversas dos últimos tempos: o líder soviético Joseph Stalin (1878-1953).
O o mais recente no plano para tirar da obscuridade o líder comunista, que governou a antiga União Soviética com mão de ferro por três décadas, foi a inauguração, em meados de maio, de uma estátua em sua homenagem em Moscou.

Culto à personalidade
O monumento a Stalin, que retrata o ex-governante olhando para o horizonte, ladeado por trabalhadores em adoração e crianças oferecendo-lhe flores, foi instalado dentro da estação Taganskaya do metrô de Moscou.
A escultura é uma réplica de outra que adornava a estação na década de 1950 e foi removida em 1966, segundo o The Moscow Times.
"Especialistas recriaram a composição com base em fotografias e documentos de arquivo", informou o jornal moscovita.
O monumento original foi desmontado durante a chamada "desestalinização", o processo iniciado após o sucessor de Stalin, Nikita Khrushchev (1894-1971), denunciar a repressão brutal que o líder comunista desencadeou contra seus oponentes reais e imaginários, e que ele atribuiu a uma mistura de paranoia com um culto excessivo à personalidade.
Khrushchev fez os comentários em 1956, durante o 20º Congresso do Partido Comunista, e, a partir de então, estátuas de Stalin foram derrubadas, seu nome foi apagado do hino nacional, e seu corpo, que foi embalsamado e colocado no mausoléu na Praça Vermelha ao lado do de Lenin, foi enterrado perto dos muros do Kremlin.

No entanto, com a ascensão de Putin ao poder, a imagem de Stalin começou a ser recuperada.
E prova disso é que, nos últimos 25 anos, pelo menos 108 monumentos a Stalin foram erguidos em toda a Rússia, e o ritmo acelerou desde o início da invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022, disse o historiador russo Ivan Zheyanov ao jornal The New York Times.
Além disso, há alguns dias, Putin disse que está considerando renomear a cidade de Volgogrado, no sul do país, para Stalingrado.
O anúncio é surpreendente, já que, há alguns anos, o próprio Putin reconheceu os crimes cometidos por Stalin.
"É muito importante que todos nós e as gerações futuras conheçamos e nos lembremos deste período trágico da nossa história, em que grupos sociais e povos inteiros foram cruelmente perseguidos", disse o presidente na ocasião sobre os expurgos stalinistas.
O último monumento ao controverso líder soviético foi inaugurado para coincidir com o 80º aniversário do Dia da Vitória, quando a Rússia celebra sua vitória sobre a Alemanha nazista, e com o 90º aniversário da inauguração do Metrô de Moscou, que entrou em operação durante o regime de Stalin.

A estratégia parece funcionar
O papel desempenhado pelo líder soviético na Segunda Guerra Mundial é um dos argumentos que as atuais autoridades russas usam para reabilitar Stalin, e parece convincente.
Pelo menos é o que indicam os depoimentos que o editor da BBC Rússia, Steve Rosenberg, coletou de alguns cidadãos que ele questionou em Moscou sobre a homenagem ao ex-governante.
"Acho que Joseph Stalin é injustamente odiado. Ele fez muito pela nossa nação", respondeu um jovem.
"Claro que ele era um tirano, mas mesmo assim provou seu valor como líder", acrescentou uma mulher de meia-idade.
O Kremlin está obviamente omitindo aspectos controversos do papel de Stalin antes e durante a Segunda Guerra, como o fato de ele ter assinado um pacto de não agressão com a Alemanha nazista em agosto de 1939.
Por meio do chamado Tratado Molotov-Ribbentrop, Moscou e Berlim não apenas prometeram não se atacar, como também dividiram a Europa Oriental, começando pela Polônia, país que semanas depois foi invadido pelas tropas de Adolf Hitler.

E quando Rosenberg perguntou aos entrevistados sobre a repressão e os milhares que pereceram nos "gulags" (campos de concentração e trabalhos forçados soviéticos), recebeu uma variedade de respostas.
"Não podemos culpar apenas Stalin por isso, porque tudo fazia parte de um sistema", disse um jovem.
"Ninguém é perfeito. Ele provavelmente fez isso porque não tinha outra escolha", acrescentou um aposentado.
Apenas um dos entrevistados itiu que o período stalinista foi "um capítulo triste da nossa história".
Stalin foi responsável pelo chamado "Grande Terror", uma onda de expurgos registrada entre 1936 e 1938, na qual se estima que entre 700 mil e 1,2 milhão de pessoas morreram, incluindo soldados, intelectuais, membros de minorias étnicas e camponeses.

A União Soviética também ressurge
Mas o governo de Putin parece ter decidido desenterrar não apenas Stalin, mas também o vasto país que ele governava: a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
"A URSS ainda existe legalmente", declarou recentemente Anton Kobiakov, assessor do Kremlin.
Segundo Kobiakov, o tratado assinado em dezembro de 1991 pelos então líderes da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia — Boris Yeltsin, Leonid Kravchuk e Stanislav Shushkevich, respectivamente — é ilegal.
"Como foi o Congresso dos Sovietes que criou a URSS em 1922, ela deveria ter sido dissolvida por decisão desse mesmo congresso", argumentou.
Por mais ridículo que isso possa parecer, especialmente porque a URSS não existe mais como entidade legal há mais de três décadas, a ideia tem apoio entre os russos nostálgicos.
"A dissolução foi ilegal, então deveria ser revogada", disse ao editor da BBC um ultranacionalista que se manifestava na Praça Vermelha de Moscou com uma bandeira vermelha com a foice e o martelo.

Em 2021, uma pesquisa do Levada Center constatou que 63% dos russos — incluindo o próprio Putin — consideraram a dissolução da URSS um "erro".
Mas qual a relevância disso hoje? Por exemplo, segundo o assessor Kobyakov, o conflito na Ucrânia é uma questão interna, não uma guerra entre dois Estados.
"Queremos retornar às fronteiras que tínhamos em 1945 e acabar com esta guerra", disse um veterano do Exército Vermelho a Rosenberg.
No entanto, a maioria dos russos reconhece que a ressurreição do Estado fundado por Lenin parece difícil.
"Não acho que seja realista na atual situação política, porque todos os países que costumavam fazer parte da URSS agora são independentes e autônomos. Eles gostariam de retornar à União? Acho que não", disse um entrevistado.
Há anos, Putin vem reinterpretando a história de seu país. Assim, em 2022, ele chegou a questionar a própria existência da Ucrânia.
"A Ucrânia moderna foi criada completa e inteiramente pela Rússia, mais especificamente pela Rússia bolchevique e comunista", disse ele na época.
"Esse processo começou quase imediatamente após a revolução de 1917, e Lenin e seus colaboradores o fizeram da maneira mais desastrosa em relação à Rússia: dividindo-a, arrancando pedaços de seu próprio território histórico", acrescentou.
Rosenberg considera improvável que "acordemos um dia com a URSS de volta". No entanto, ele alerta que a estratégia do Kremlin parece "ser uma tentativa das autoridades russas de mudar o ado para tentar justificar o presente".

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