Opinião

Visão do Correio: Despreocupação com a ameaça plástica

É no mínimo um contrassenso que o Brasil, um país que se coloca como figura-chave no debate sobre a crise ambiental, exiba recordes tão insalubres sobre poluição por plástico

Apenas 9% do plástico produzido no mundo é reciclado  -  (crédito:  AFP)
Apenas 9% do plástico produzido no mundo é reciclado - (crédito: AFP)

É utópico acreditar que o mundo funcionaria, hoje, se fosse proibido o uso do plástico. O produto cuja produção deslanchou após a Segunda Guerra Mundial é curinga na indústria de embalagens e componente obrigatório em materiais médicos, obras de infraestrutura, vestuários, automóveis, eletrônicos diversos…Sem dúvidas, trata-se de um material que está na engrenagem da vida moderna. Mas que também tem se revelado cada vez mais ameaçador à humanidade.

Dois estudos científicos divulgados nas últimas semanas ilustram o tamanho do problema. O cérebro concentra mais vestígios desse material do que outros órgãos humanos, com aglomeração subindo em ritmo industrial. E mais: corre no Brasil o segundo rio mais poluído por microplásticos do mundo, fenômeno que tem comprometido as águas de todos os cantos do planeta. Não à toa, a Organização Mundial da Saúde (OMS) usa expressões como tsunami e inundação para se referir aos atuais impactos desse tipo de lixo nas populações, principalmente as mais vulneráveis. 

Na avaliação de pesquisadores da Universidade do Novo México (EUA), responsáveis pela recente análise da presença do material no corpo humano, a situação é alarmante. Em artigo publicado na renomada revista Nature Medicine, a equipe relata que a concentração de microplásticos no cérebro aumentou 50% em oito anos. No caso de indivíduos diagnosticados com demência, é pior: havia 10 vezes mais plásticos no tecido cerebral. Apesar de não ser possível estabelecer uma relação de causa e efeito, a diferença relevante indica a importância de mais investigações, sobretudo em tempos de também expressivo envelhecimento populacional.

Quanto às águas, é o Rio Bugres, entre  Santos e São Vicente, no litoral de São Paulo, que tem a concentração de resíduos plásticos "nunca vista antes na costa da América Latina", segundo artigo conduzido pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) e publicado na revista Marine Pollution Bulletin. Apenas Pasur, em Bangladesh, está em condições mais precárias. No caso do rio brasileiro, a maior abundância de microplásticos foi encontrada em áreas de palafitas densamente povoadas e coleta precária de lixo, evidenciando a urgência de medidas de infraestrutura e saneamento nas cidades de economia pujante e de forte apelo turístico.

Não são as únicas a enfrentar esse cenário. Um estudo em andamento na Universidade Federal do Pará estima que são lançados anualmente nos rios amazônicos 182 mil toneladas de plástico, o que faz com que a bacia hidrográfica esteja entre as mais poluídas no mundo. É no mínimo um contrassenso que um país que se coloca como figura-chave no debate sobre a crise ambiental exiba recordes tão insalubres. Há de se lembrar que o Brasil é um dos principais produtores do material do planeta, o que deveria avolumar a responsabilidade com o descarte.

Pelo mundo, a despreocupação com a ameaça plástica se repete — como visto na última reunião da ONU sobre o tema, em novembro, na Coreia do Sul. Na ocasião, representantes de 175 nações não conseguiram fechar o tratado de redução desses poluentes. O instrumento internacional vem sendo discutido desde 2022. E a expectativa é de que uma nova rodada de negociações ocorra ainda neste ano. Sem acordo, o planeta segue com a vergonhosa reciclagem de míseros 9% do plástico produzido e previsões, pela OCDE, de que a produção do material triplique até 2060.

 

 

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postado em 01/03/2025 06:00
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