Roberto Rodolfo Georg Uebel — professor de relações internacionais da ESPM, economista e geógrafo
Ao longo das últimas três décadas, nos acostumamos a adotar datas para explicar o curso das relações internacionais: o fim da URSS em 1991, os atentados de 11 de setembro de 2001, o início da guerra no Iraque em 2003, a crise econômica de 2008, a crise do euro em 2012, o referendo do Brexit em 2016, a pandemia da covid-19 em 2020, a guerra na Ucrânia em 2022, a guerra em Gaza em 2023 e, agora, o início do fim do multilateralismo em 2 de abril de 2025. Todos esses fatos têm algo em comum: mudanças na estrutura das relações internacionais.
Para alguns pensadores, como o ex-ministro das Finanças da Grécia Yanis Varoufakis, trata-se de uma conjuntura ainda mais complexa: seria a transformação da própria estrutura do capitalismo naquilo que o economista grego chama de tecnofeudalismo. Para o saudoso geógrafo brasileiro Milton Santos, são os efeitos da globalização perversa que se fazem sentir cada vez mais, seja pela via da política, da economia, seja, até mesmo, pelo meio ambiente e pelas mudanças climáticas.
Contudo, hoje, 2 de abril de 2025, deverá ficar para a história não apenas por representar uma mudança nas relações internacionais, mas por marcar o início de uma transformação profunda das nossas relações políticas, sociais e, por que não, culturais — isto é, a forma como vemos e vivemos neste mundo. Chamo esse novo horizonte que se desenha de fragmentação da multilateralidade, ou do multilateralismo. Mas por que esta data específica?
O 2 de abril de 2025 é previsto como dia do início oficial da Guerra Tarifária dos Estados Unidos, ou "Liberation Day", segundo Trump, contra não apenas seus principais aliados, como México, Canadá e países da União Europeia, mas também contra a China e outros parceiros estratégicos, como o Brasil. Segundo o presidente Donald Trump, essas tarifas não terão apenas fins comerciais, mas, sobretudo, políticos e geopolíticos. It's not just tariffs, stupid!
Para entendermos a dimensão da nova conjuntura que se descortina, imagine uma xícara sendo jogada ao chão. Ela se quebrará em centenas de pedaços que, mesmo colados e remendados por alguém bem-intencionado, jamais voltarão a cumprir a mesma função — no máximo, será um objeto de decoração. Algo semelhante aparece em uma das cenas do filme Vitória, em cartaz, estrelado pela grandiosa Fernanda Montenegro, provável candidata ao Oscar no próximo ano.
Este é o mundo atual: uma xícara prestes a ser jogada ao chão, correspondente ao sistema multilateral das relações internacionais. Um sistema em que organizações criadas há mais de um século mantêm alguma ordem global, o convívio sob regras e, como escreveria Kenneth Waltz, uma anarquia sob controle. Com sua fragmentação, provocada por uma agenda protecionista, isolacionista e nacionalista de Trump — e a resposta dos governos, inclusive seus aliados —, dificilmente veremos uma OMC eficaz para resolver querelas comerciais ou uma ONU com autoridade para desautorizar incursões em lugares como o Canal do Panamá ou a Groenlândia.
As tarifas, enquanto mecanismo para encarecer produtos de países considerados "injustos" por Trump ou com os quais os EUA têm deficit comercial — o que não é o caso do Brasil —, são, na realidade, o instrumento legal encontrado pelo governo norte-americano para alcançar seus objetivos políticos e geopolíticos.
Se o México não barrar o fluxo de imigrantes ao norte, seus produtos serão tarifados; se o Canadá se recusar a vender petróleo exclusivamente aos EUA, será acusado de permitir o tráfico de opioides e, por consequência, sobretaxado; se os europeus, especialmente a Dinamarca, não consentirem com a cessão da Groenlândia a Washington, seus produtos, sobretudo bebidas, poderão ser taxados em até 200%; se a Ucrânia não aceitar exportar minerais críticos e terras raras com exclusividade aos EUA, poderá perder parte do seu território em um cessar-fogo negociado apenas entre a Casa Branca e o Kremlin; por fim, se a China seguir promovendo a competitividade capitalista nas indústrias tecnológica, quântica e aeroespacial, enfrentará tarifas e ameaças militares.
Este é o início da fragmentação do multilateralismo, cuja data já conhecemos. Mas não ousaria prever quando será o seu fim. Estamos, de fato, ingressando em uma nova era das relações internacionais. Tal como os marcos mencionados no início deste texto, trata-se de um ponto de inflexão, de não retorno. O mundo e suas organizações internacionais não serão remendados. Trata-se de um novo regime internacional.
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