
LEONARD FARAH, especialista em gestão de crises, CEO e cofundador da HUMUS, ONG de prevenção e resposta a desastres
São incontáveis as vezes em que ouvi essa frase — "a culpa é da chuva" — ser dita por autoridades após uma tragédia. Repito: incontáveis. Sempre que chego a um desastre, ouço alguém colocar a culpa em algo "inevitável", como um fenômeno da natureza.
Mas desde quando a natureza virou desculpa para a negligência humana? Durante meus estudos no Japão, ouvi de um professor algo que nunca mais esqueci: "Terremotos não matam pessoas. Casas frágeis, sim."
A lógica é direta e precisa. Deslizamentos não matam pessoas, mas, sim, moradias construídas em áreas de risco. Enchentes não matam pessoas, mas, sim, a falta de alerta, de rotas de fuga, de políticas públicas e de educação preventiva.
O Brasil tem memória curta e prevenção frágil. Desde 2009, estive presente em tragédias como Mariana, Brumadinho, o ciclone em Moçambique, os terremotos no Haiti e na Turquia, as chuvas em Petrópolis, São Sebastião, Recife — e, mais recentemente, nas enchentes catastróficas no Rio Grande do Sul. Posso afirmar com toda certeza: o povo brasileiro é solidário, se mobiliza. Mas não resolve.
ado o susto, a a vontade. Nas semanas seguintes ao desastre, recebo dezenas de mensagens: "Precisamos expandir os programas da HUMUS para mais cidades!", "Temos que fazer treinamento em prevenção!". Mas, conforme a água vai baixando, vai junto a vontade de fazer diferente.
O resultado é trágico e bilionário. Segundo o relatório Climate and Catastrophe Insight 2025, os desastres naturais causaram US$ 368 bilhões em perdas econômicas em 2024 — 14% acima da média do século. Apenas 40% desses prejuízos foram cobertos por seguros. O restante recaiu sobre as costas dos mais pobres, dos pequenos comerciantes, das famílias que perderam tudo.
No Brasil, o estado do Rio Grande do Sul registrou, há um ano, o maior desastre climático da sua história. Mais de R$ 7 bilhões em perdas econômicas estimadas, milhares de famílias desalojadas e um rastro de destruição que vai atrasar a economia regional por anos. O que se perde não são apenas casas — são negócios, empregos, escolas, histórias de vida.
E o pior: muito desse sofrimento era evitável. Cada dólar investido em prevenção economiza de US$ 10 a 15 em resposta e reconstrução, segundo o mesmo relatório. Mas essa conta não aparece nas planilhas orçamentárias. Porque a prevenção, apesar de eficiente, é invisível.
É como um garçom que, ao ver o chão molhado no restaurante, corre para colocar a plaquinha de "piso escorregadio". Ninguém escorrega. Ninguém se machuca. Ninguém vai parar no hospital. Não tem manchete. Mas foi a prevenção que salvou.
Agora imagine o contrário. Sem a placa de aviso, alguém escorrega, bate a cabeça, chama uma ambulância, interna, faz tomografia, cirurgia, fisioterapia. O custo é incalculável. Mas agora temos um nome, um F, uma vítima. E, aí, sim, o sistema se mobiliza.
A prevenção é a heroína anônima da história. E como toda heroína invisível, ela não é valorizada. Em uma das cidades atingidas no Rio Grande do Sul, uma bombeira que havia feito o treinamento da HUMUS conseguiu alertar toda a população com antecedência. Resultado: nenhuma vítima. Todos salvos. Mas essa cidade não saiu no jornal, não recebeu doações, não ganhou likes. Enquanto a cidade vizinha, com dezenas de mortos e casas soterradas, recebeu tudo — recursos, mídia, atenção.
Estamos premiando o caos e punindo a competência. Enquanto isso, seguimos alimentando a "indústria do desastre". Pessoas bem-intencionadas que doam, por impulso, R$ 100. Esses valores se perdem na cadeia de doações: viram garrafinhas de água que demoram semanas para chegar ao destino. Às vezes, quando chegam, já não são mais necessárias. E pior: quebram o comércio local que poderia fornecer água, gerando mais crise.
O desastre é um vilão visível. A prevenção é uma salvadora silenciosa. E, por isso, seguimos no ciclo. E esse ciclo vai piorar. Os eventos extremos vão se intensificar. As mudanças climáticas vão acelerar as tragédias. O Brasil continuará vendo cenas de carros sendo arrastados, crianças soterradas, abrigos improvisados. E a economia encolhendo.
Enquanto isso, em frente às câmeras, alguém vai dizer: a culpa é da chuva.