
» MARCO AURELIO MOURA DOS SANTOS, Doutor em direito internacional e comparado(USP) e professor de direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie
Ouso sistemático da fome como método de coerção em conflitos armados transcende a mera configuração de emergência humanitária, assumindo prática condenada no direito internacional. A imposição intencional de condições de vida destinadas a provocar a destruição de um grupo pode configurar crime de guerra, contra a humanidade e, havendo dolo específico, genocídio. As violações em Gaza suscitam paralelos com episódios históricos emblemáticos nos quais a privação deliberada de alimentos foi instrumento de políticas de extermínio.
O genocídio perpetrado contra os armênios pelo Império Otomano iniciado em 1915 foi um precedente da utilização da fome como instrumento de aniquilação. A política otomana, depois assumida pela Turquia, compreendeu deportações forçadas, execuções sumárias e a prática sistemática de privação de alimentos, resultando na morte de aproximadamente 1,2 milhão de pessoas. O bloqueio do o às fontes de subsistência foi executado com o intuito de provocar a destruição do grupo étnico, sendo considerado como o primeiro genocídio do século 20.
Entre 1932 e 1933, o regime soviético de Stalin implementou na Ucrânia o Holodomor, um dos mais devastadores episódios de fome induzida da história contemporânea. Políticas agrícolas coercitivas, como a coletivização forçada e a requisição de colheitas, associadas ao cerco militar das áreas rurais, privaram o o dos camponeses ucranianos aos alimentos que produziam. O número de mortos foi aproximadamente 3,3 milhões. A fome foi ferramenta para suprimir movimentos nacionalistas e consolidar o domínio soviético.
Durante o Holocausto, a Alemanha nazista usou a fome como arma de extermínio, impondo condições degradantes em guetos, como o de Varsóvia, para enfraquecer os judeus e facilitar sua deportação e morte.
Desde março de 2025, Gaza enfrenta uma crise humanitária extrema. O bloqueio quase total imposto por Israel impede a entrada de alimentos, medicamentos e bens essenciais, provocando fome generalizada. A ONU alerta que 470 mil pessoas correm risco de fome catastrófica, com um número crescente de crianças à beira da morte por desnutrição.
Embora, recentemente, tenha sido autorizada a entrada de ajuda humanitária sob severas restrições, a distribuição de alimentos e suprimentos tem se revelado insuficiente, fragmentada e marcada por ineficiências logísticas, agravando a crise. Organizações internacionais manifestaram preocupações quanto à utilização da fome como instrumento de guerra, alertando para as graves violações do direito internacional humanitário e dos direitos humanos em curso.
A resposta diplomática internacional, embora discreta, levou Reino Unido e França a suspenderem acordos comerciais. Alemanha e Espanha também manifestaram publicamente condenação ao bloqueio israelense. Especialistas e a ONU, com base no direito internacional humanitário, destacam que o uso da fome como método de guerra é proibido pelo Artigo 54 do Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra (1977). A prática pode constituir crime de guerra e, dependendo das circunstâncias, configurar crime contra a humanidade ou genocídio, conforme o Estatuto de Roma (1998).
O agravamento da questão em Gaza intensificou críticas internacionais às ações de Israel, mas também fomentou preocupantes manifestações de antissemitismo, evidenciando a dificuldade em separar a crítica legítima ao Estado de Israel de preconceitos históricos contra judeus. Exemplo foi o ataque recente ocorrido em Washington, próximo a um museu judaico, que resultou na morte de dois diplomatas israelenses, episódio classificado como crime de ódio pelas autoridades norte-americanas. O cenário evidencia como o conflito no Oriente Médio reverbera globalmente, gerando polarizações que, além de comprometerem o debate racional, ameaçam a segurança das comunidades judaicas.
A recorrência, em pleno século 21, de práticas historicamente condenadas — como a instrumentalização da fome para extermínio ou coerção — expõe a fragilidade e inoperância dos mecanismos internacionais de prevenção e responsabilização por atrocidades em massa. A crise em Gaza é inaceitável testemunho dessa falência, reiterando que, sem o fortalecimento urgente das estruturas de intervenção humanitária e de justiça internacional, tais crimes seguirão sendo normalizados, perpetuando um ciclo de impunidade que pode corroer definitivamente a credibilidade do sistema internacional.